sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (II)

Raimon parte para Valência para estudar. O bacharelato correu-lhe bem. É quando pensa que tem possibilidades dramáticas e planeia entrar no Real Conservatório de Música e Declamación: o seu irmão Enric, que trabalhava num bar na capital, e o amigo “Cote”, que estudava filosofia, vão ser as suas primeiras bases. Depois, passou a viver em pensões e colégios.

Cedo, porém, se apercebe que começar a estudar teatro não é começar a fazer de galante, e que é preciso partir muita pedra, coisa que o aborrece de sobremaneira. Isso, de qualquer forma, era a que ele estava habituado, e em idades tão precárias uma pessoa quer ser simplesmente aquilo que mais lhe apetece dentro da pequena mostra de artes e ofícios de que se teve conhecimento. Contudo teria sorte, e iria descobrir, com quem diz, por acaso, uma disciplina que não imaginava qual. Um dia, indo buscar o seu amigo “Cote”, à Facultat de Lletres, entrou numa sala, para ver o que por lá se dizia. E concluiu que era bem mais interessante que a técnica de declamação que lhe ocupava o precioso tempo dedicado a formar-se; precioso em todos os sentidos, já que para Raimon estudar era mesmo um luxo, como o era, em geral, para todas as famílias de trabalhadores: era necessário dinheiro para a matrícula, os livros e as despesas, e se ainda fosse pouco deixavam de ir, que um trabalho já começava a oxigenar as precárias economias domésticas.

Raimon matricula-se em Filosofia e Letras e, graças às boas notas, consegue uma bolsa do Sindicato Español Universitário (SEU) que o ajuda economicamente. Tampouco o gasta, porque o SEU também oferece refeições aos estudantes; a oferta gastronómica, porém, é um triste rancho, muito mau, mas Raimon, com as trocados que junta, consegue um jantar com os amigos ou uma noite de conversas regadas com os combinados que acabavam de chegar do transoceânico: a Cuba livre.

“A les butxaques d’uns pantalons vells” (“Nos bolsos de umas calças velhas”), onde guarda as lembranças sentimantais, tem o leite que cada manhã o seu irmão Enric lhe deixava na travessa, para complementar vitaminicamente uma dieta pouco equilibrada.
A universidade ainda não era massificada. Na Rua da Nau, num curso presidido por Joan-Lluís Vives, cursavam o primeiro ano comum apenas uns setenta estudantes, e a partir do terceiro, quando Raimon se especializa em História, não mais que uns vinte. Isso fez com que os professores conhecessem os alunos pelo seu nome, que a docência fosse boa, e que, em suma, houvesse uma relação familiar que permitia que o catedrático repreendesse discretamente “Pele” quando chegava tarde de manhã porque tinha lido até altas horas da noite ou porque algum professor o tinha convidado para jantar em sua casa e a conversa se tinha estendido.

Raimon tem aquela fluidez de conhecimento de quem tem uma permanente curiosidade intelectual e um raciocíno metódico, sério, exigente, organizado; de quem nunca toma por boa a evidência demasiado fácil, que dá sempre a volta à abordagem que primeiramente assumiu para ver as coisas de uma maneira diferente; ainda que o negue, Raimon teria dado um muito bom político, porque a res publica requer esta sistemática de raciocínio; mas licenciou-se em História. Corria o ano de 1963, quando ainda não tinha completado os vinte e três anos. Conselhos posteriores do doutor Jordi Nadal, muito influente em gerações de economistas, pretenderam orientá-lo, tendo-o enviado a um curso de especialização, com tudo pago, a Aix-de-Provence, que até lhe foi de grande utilidade. Mas não na direcção académica, na qual Nadal lhe augurava bom futuro: decidiria que não se dedicaria à História. Aí também faria um bom amigo, que depois faria uma importantíssima carreira política, alcalde de Barcelona, conselheiro da Generalitat e vice-presidente do Governo Espanhol, Narcís Serra, e iria descobrir Mozart graças a uma representação de “Cosi fan tutte” e musicaria pela primeira vez um poema de [Salvador] Espriu, “Cançó del Capvespre”.

[As duas capas de discos (de 1963 e 1966) que vemos aqui em baixo são as duas primeiras vezes onde apareceu o tema de hoje. Salvador Espriu é um nome maior da poesia catalã e peço desde já desculpa por ter traduzido este seu poema.
Mais uma vez - e para oferecer o melhor aos que me lêem - a canção na caixa de música (a número 6) é a original, de 1963. Porém, como a de ontem, sofre do tal problema. Para a ouvirem em condições basta copiarem a que ficará na pasta dos ficheiros temporários da net, após ela ter sido completamente carregada.
Esta preciosidade que tenho-a há algum tempo no ordenador e não fazia sentido não ser divulgada. Porque os arranjos conseguidos caracterizam excelentemente o tom paisagístico do poema. Simplesmente fantástica!]



Cançó del Capvespre



S'enduien veus d'infants
el sol que jo mirava. /

Vozes de crianças levaram
o sol que eu olhava.
Tota la llum d'estiu
se'm feia enyor de somni. /

Toda a luz do Verão
me dava vontade de sonhar.

El rellotge, al blanc mur,
diu com se'n va la tarda. /

O relógio, no muro branco,
diz como vai a tarde.
S'encalma un vent suau
pels camins del capvespre. /

Um vento suave abranda
pelos caminhos do entardecer.

Potser demà vindran
encara lentes hores
de claror per als ulls
d'aquest esguard tan àvid. /

Talvez amanhã ainda
venham horas lentas
de luz para os olhos
deste olhar tão ávido.

Però ara és la nit. /
Mas agora é noite.
I he quedat solitari
a la casa dels morts
que només jo recordo. /

E fiquei sozinho
na casa dos mortos
que só eu lembro.

Sem comentários: