quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (VI)

Em Xátiva, durante “les passejades nits d’estiu” (“as passeadas noites de Verão”), Raimon escutava os ensaios das bandas, que se tornam numa música de fundo urbana muito original. Na povoação havia duas bandas, a Velha e a Nova. O pai de Raimon estava ligado à Banda Nova ou Música Nova, tendo sido seu presidente, e inculcou nos seus filhos o amor pela música. Ali Raimon aprendeu solfejo desde os cinco anos com o celebrado método de Hilarión Eslava, que permanecia como bom material didáctico desde 1846, e então começa a tocar oboé. Porém, fazer soprar a dupla palheta requeria um esforço dos músculos faciais que lhe provocava hemorragias nasais, facto pelo que lhe vão destinar um instrumento menos difícil. Passa então para o flautim, que emite a mais delicada das acuidades e que Beethoven incorporou no conjunto sinfónico. Raimon aprende a tocar um repertório muito versátil, desde pasodobles e outros géneros dançáveis até versões de Mozart, Beethoven, Schubert, Bizet e Wagner, que o metal exemplificava até atingir o resultado. Paralelamente cantava num coro e começa a educar a voz.

Destes conhecimentos essencialmente melódicos parte a base do grande construtor de melodias, e [Raimon] destaca ou reivindica este facto quando, no recital de comemoração dos trinta anos da canção “Al Vent”, em 1993, no dia de Sant Jordi no Palau Sant Jordi, volta a tocar flautim na banda La Lira Ampostina.
Para lá da banda, expressão urbana, o jovem Raimon está abertamente exposto ao mundo: ouve música popular e agrada-lhe especialmente o blues, Billie Holiday, Ray Charles, também Lorenzo González e os boleros, os Platters, naturalmente - “Only You” -, e o que já denota uma certa extravagância, as canções francesas e italianas, que descobre respectivamente graças sobretudo a Juliette Gréco e Domenico Modugno. Quando tem catorze anos, começa a pôr discos na Ràdio Xàtiva, o que lhe oferece um espectro mais amplo de possibilidades de audição e isto começa a estimular-lhe o gosto pela vocalização, esforçada quando tem de registar anúncios num Castelhano que não domina, como agora “jabón el oso”, mas que virá a desenvolver melhor em grupos de teatro amadores.

Quando se muda de Xátiva a Valência, a primeira cidade que conhece para estudar, dá-se conta, por contraste, que da povoação levou outra coisa. Não é fácil de discernir porque não cabe nem na pasta nem na memória: é intangível. Mas será um elemento fundamental para uma pessoa que acabará por fazer música. Uma determinada ideia de tempo.

Há muitos tipos de tempo e medem-se com réguas diversas: calendário, agenda, relógio, cronómetro, a campainha dos monges e os anos-luz dos astrónomos… O tempo musical, que não podemos chamar doutra forma que no Italiano que subjaz a este termo, tempo no singular, tempi no plural. O tempo é basilar na música, o tempo do metrónomo, tão essencial como o som, e se o som do metal e do vento o leva Raimon de Xátiva, também leva o tempo. Explica-o claramente em Les Hores Guanyades: “O meu ritmo vital é ainda o mesmo de quando vivia em Xátiva”, destacando a lentidão e muitas outras coisas que não importa agora transcrever. Mais adiante, no mesmo diário, reclama o valor do tempo: "O movimento, na música, isso a que muitos músicos chamam tempo, é importantíssimo".


Sem esta percepção muito clara do tempo, ligada ao metrónomo alto que nos daria o tempo parado de Xátiva do fim do século XX, a música de Raimon não se poderia explicar razoavelmente. O tempo musical de Raimon vai permitir que o tempo verbal não seja nem curto nem longo, que as palavras se entendam e encontrem também na música a plenitude do tempo que também elas levam dentro. Mas disso falaremos mais à frente, como falaremos da constante reflexão que moveu Raimon sobre esta ideia que tanto trabalho deu a filósofos e relojoeiros.
É nesta altura que Raimon está a criar a realidade que mais tarde serão aqueles versos: "He deixat mar maré / sola / a Xàtiva al carrer Blanc", que abrem o capítulo. No seguinte vamos até Valência.

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