quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

I - A l'Any Quaranta, Quan Jo Vaig Nàixer (I)

"O melhor e mais importante cantautor catalã de todos os tempos." Com esta contundência define Raimon Jordi Garcia Soler, máximo estudioso da Canção Catalã, que arranca na segunda metade do século XX e que inicialmente vai ser conhecida como a Nova Cançó, marca que dá título ao livro que contém a citação. Mas Raimon é muito mais que um valor local; o seu nome encontra-se ao lado dos grandes renovadores da música popular, que se faz desde esta época em diante. Mais de quarenta anos no activo, uma obra de diferentes etapas e a cumplicidade de um público de diferentes lugares e diversas idades: desde os maiores aos mais jovens. Uma variedade estimulante.

A Gran Enciclopèdia de la Mùsica diz de Raimon:

Raimon. Xàtiva, 1940. Nome pelo qual é conhecido o cantor valenciano Ramon Pelegero i Sanchis. Descoberto pelos Setze Jutges quando era um jovem estudante de História, apresenta-se em Barcelona em 1962 e obtém um êxito imediato com canções como "Al Vent", que surpreendem pelo uso do grito e pelo existencialismo rebelde que jorra dos textos. Em 1963 ganha o Festival de la Cançó Mediterrània de Barcelona - juntamente com Salomé - com o tema de J.M. Andreu e L. Borrrel "S'en va anar". Muitas das suas canções posteriores ("Diguem no"; "D'un temps, d'un país", "El País Basc") foram assumidas pela sociedade como hinos antifranquistas. De facto, os seus concertos tornaram-se amiúde cerimónias colectivas electrizantes - é preciso lembrar o seu primeiro Olympia (1966), e os recitais no Palau dels Esports de Barcelona (1975) e o Pabellón de Deportes del Real Madrid (1976). Seria injusto, contudo, reduzir Raimon a uma função resistencial: hábil musicador de Espriu ("Indesinenter", "He Mirat Aquesta Terra", "Cançons de la Roda del Temps") e de poetas dos séculos XV e XVI como Ausiàs March, Roís de Corella ou Joan Timoneda, escreveu também canções de um grande lirismo e qualidade poética ("Com un Puny", "Als Matins a la Ciutat", "Al Meu País la Pluja"). Tudo isto faz com que Raimon supere a crise subsequente à Transição e seja considerado no fim do século comum clássico no activo, mantendo o seu poder de convocatória. A sua discografia, com álbuns como Per destruir aquell qui l'a desert (1970), A Víctor Jara (1974), Quan l'aigua es queixa (1979) ou Cançons de mai (1997) encontra-se reunida numa caixa de dez cedês chamada Nova Integral. Edició 2000. Raimon é, também autor de um diário (Les hores guanyades, 1983) e de um livro de poemas (D'aquest viure insistent, 1986).

A canção com que se abre o verso que dá nome a este capítulo, "A L'Any Quaranta", leva como título "Quan Jo Vaix Nàixer". Nela o autor situa o marco político da época na qual vem a um mundo em convulsão. A Guerra Civil tinha terminado há apenas vinte meses; Franco assina a tristemente célebre última parte no dia 1 de Abril de 1939, e Raimon nasce a 2 de Dezembro de 1940. Naquele comunicado, o generalíssimo - superlativo gramaticalmente impossível, ao ser aplicado a um substantivo e não a um adjectivo - assegurava que "as trorpas nacionais alcançaram os seus últimos objectivos", mas era mentira: ainda lhes faltava derramar muito sangue. Precisamente, Raimon começa a canção com o mais cru da ditadura, o preço de vidas. Depois do verso mencionado, canta: "Encara no havien mort tots" ("Ainda não tinham morrido todos").

Falemos de números, quantifiquemos o "todos". Em 1940, só na Catalunha vão ser literalmente assassinadas - o historiador Antoni Segura usa este termo - 763 pessoas; em 1939 tinham sofrido da mesma sorte 2077 pessoas. Borja de Riquer anota, pera juntar a estes dados mórbidos, 41000 mortes em combate, 5500 por bombardeamentos e 9000 por causa da repressão. As fossas comuns descobertas no ano 2004 evidenciam que muitos "desaparecidos" eram, na verdade, mortos anónimos. Em 15 de Outubro do ano de 1940, em suma, um mês e meio antes que nascesse Raimon, era fuzilado no castelo de Montjuïc Lluís Companys, presidente da Generalitat de Catalunya.

Mas a canção de Raimon não fala só de mortos pelas armas, fala também da fome que vai coadjuvar àquele extermínio: entre 15000 e 20000 vítimas, segundo o mesmo Riquer. E Raimon menciona igualmente o preço do exílio e da prisão. Aqui situamo-nos entre os 60000 e os 70000 exilados catalães, e um total de 440000 espanhóis que vão atravessar a fronteira, fugindo aos vencedores. Fazendo uma estimativa, Segura dá um número de 220000 presos em todo o Estado, naquele ano quarenta. Vai ser necessário transformar praças de touros e equipamentos públicos de pouco estatuto social como agora hospícios para alojar tantos reclusos e reclusas. E os aliados nazis vão construir e gerir para Franco os primeiros campos de concentração, que com a II Guerra Mundial se tornariam macabras fábricas de morte em série.

"A l'any quaranta, quan jo vaig nàixer", o franquismo vai aprovar uma lei explícita contra a maçonaroa e o comunismo, em 1936 já tinha proibido os partidos políticos e as organizações sindicais, e em 1939 sancionou a lei de responsabilidades políticas retroactivas, coisa insólita em Direito segundo a qual incorriam em ilegalidade os que haviam respeitado a legalidade democrática. Diversas barbaridades legislativas posteriores vão culminar com a Lei da repressão do terrorismo, assinada para comemorar o oitavo "ano da vitória" - já que todas as cartas deveriam levar esta frase no fim - no primeiro de Abril de 1947. Este documento antijurídico considerava terrorismo qualquer oposição ao regime, o qual facilitava muito a criminalização dos acusados e dava-lhes, em suma, as mínimas condições de defesa, a começar pelo tempo e a acabar pelo direito dos detidos, substancialmente o habeas corpus... A tortura era natural e o terror que Hitler defendeu na peça oratória de Nuremberga como principal tarefa da política era precisamente a acusação de que quem o praticava era contra os seus adversários. Terroristas.

É tempo de reproduzir o texto sincero de "Quan Jo Vaig Nàixer".
[Esta primeira canção, já na caixa de música, foi gravada em Paris, no Olympia, a 3 de Março de 1974, e está incluída na décimo disco da Integral 2000]


A l'any quaranta, quan jo vaig nàixer, /
No ano quarenta, quando eu nasci
encara no havien mort tots.
/
Ainda não tinham morrido todos.
Molts es varen quedar, havien guanyat, diuen.
/
Muitos ficaram, tinham ganho, dizem.
Molts es varen quedar, havien perdut, diuen.
/
Muitos ficaram, tinham perdido, dizem.
d'altres conegueren l'exili i els seus camins.
/
Outros conheceram o exílio e os seus caminhos.
A l'any quaranta, quan jo vaig nàixer,
/
No ano quarenta, quando eu nasci,
jo crec que tots, tots, havíem perdut...
/
Penso que todos, todos, tinham perdido...

Jo no he vist aquelles morts de ràbia, /
Eu não vi aquelas mortes de raiva,
jo no he vist aquelles morts de fam,
/
Eu não vi aquelas mortes de fome,
jo no he vist aquelles morts al front,
/
Eu não vi aquelas mortes na frente,
jo no he vist aquelles morts a les presons.
/
Eu não vi aquelas mortes nas prisões,
No, jo no ho he vist i tot m'ho han contat,
/
Não, eu não o vi e tudo mo contaram,
i encara avui al meu poble ho conten,
/
E ainda hoje na minha terra o contam,
i encara avui la gent que ho ha vist amb por, ho conta.
/
E ainda hoje a gente que o viu com medo o conta.
No, jo no ho he vist ni vull veure-ho mai,
/
Não, eu não o vi nem quero vê-lo nunca,
ni a l'any setanta, ni a l'any quaranta,
/
nem no ano setenta, nem no ano quarenta,
ni a cap any dels anys.
/
Nem em nenhum ano.


A l'any quaranta, quan jo vaig nàixer, /
No ano quarenta, quando eu nasci,
jo crec que tots, tots havíem perdut, /
Penso que todos, todos, tinham perdido
a l'any quaranta. /
No ano quarenta.


O triste mapa da voracidade da ditadura fica bem desenhado na canção, completada precisamente com uma referência ao medo gerado pelo poderoso aparelho de terror. Raimon glosa o medo que a gente tinha só de falar, e esta descrição psicológica, pouco ou muito, vai manter-se até ao fim de Franco, que ainda vai assinar cinco sentenças de morte três meses antes de morrer. Raimon vai debruçar-se sobre o medo e este medo vai tornar-se num dos motivos que mais vai desenvolver ao longo da sua obra.

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