quinta-feira, 30 de julho de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (II)

O motor mobilizador de massas é claramente um elemento definidor do compromisso cívico de Raimon. E estes recitais têm por vezes um valor acrescido tratando-se de actos organizados por militantes de partidos políticos e de organizações sindicais, estudantis, culturais e de movimentos populares para recolher fundos. Raimon, contudo, recusa o partidismo directo e, ainda que desde uma simpatia não escondida pelo ideário comunista, mantém-se transversal a todas as sensibilidades da luta contra a ditadura. Como se dizia naqueles momentos, Raimon era "unitário".

A lista de recitais com esta funcionalidade de acrescento político é extensa. Mas antes de abordá-la convém deixar claro o pressuposto fundamental. Raimon canta a ética, mas sempre a partir da estética, pelo que se emprega bem a frase-mãe, " a estética é a ética do amanhã". Escreveu-a nem mais nem menos que Máximo Gorki, que explica a Revolução soviética a partir do costumismo e conta abundantes detalhes sobre como se lança a faúlha da agitação. O obreiro Raimon é artístico e, em caso nenhum, pretende degradar o produto ou hipotecar o valor qualitativo a favor da conjuntura; nunca produzirá obras para usar e lançar, panfletos musicais, como farão outros artistas. Todas as canções de Raimon aguentam o passar do tempo pelo que dizem e pelo como o dizem, pelo conteúdo e pela forma. Aliás, as que mais transpõem essa linha divisória sustentam-se porque se entrosam na crónica, sem nomes nem datas.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Uma pausa com "Les Hores Guanyades"

Raimon, "Les Hores Guanyades", 306 pp.
Colecção Cara i Creu, nº37, Edicions 62 S.A.
Barcelona, 1983
ISBN 84-297-2007-3


Em 1983, Raimon publica um diário que manteve de 15 de Dezembro de 1980 a 22 de Dezembro de 1981. Entre reflexões, leituras, crónicas do dia-a-dia, encontros com amigos e família, as viagens para apresentações, colóquios, para férias, o assunto central - e fio condutor da narrativa - é a regravação que o cantor estava a fazer de todas as suas canções. A obra resultante foi, como é sabido, o conjunto de 10 élepês que levou o nome "Raimon, totes les cançons", lançado pela editora barcelonesa Belter em 1981.

A maioria das canções de estúdio que podemos encontrar na Integral.2000 dizem respeito a essas gravações. Incluindo a última canção que vos trouxemos.
No artigo anterior aludimos - opinião pessoal - à "roupagem" pouco eficaz da primeira versão de "Inici de Càntic".
É sobre as canções, regravadas, de Salvador Espriu que nos fala Raimon:


"Já estão misturados os dois elepês de Espriu. Estou muito contente com o trabalho do Antoni [Ros Marbá, orquestrador]; ele contou-me que também está contente com a nossa colaboração, que foi muito intensa este mês. As Cançons de la Roda del Temps formam um corpo compacto, brilhante, sem fissuras, sem quebras de qualquer espécie. O outro élepê é um bocadinho mais irregular e dele se destacam muito "He Mirat Aquesta Terra" e "Inici de Càntic". Espriu ainda não as ouviu. Tenho muita vontade de lhas dar a ouvir. Espero "emocioná-lo", porque o resultado artístico, nestes dois discos sobre os seus poemas, é realmente brilhante. O facto de que o Antoni tenha seguido todo o processo de gravação da música instrumental, que o tenha conduzido ele, acabou por conseguir o melhor dos músicos, e isso nota-se no resultado final."
14 de Outubro de 1981

"Salvador Espriu ouviu os dois elepês feitos sobre os seus poemas. Ouvimo-los juntos no seu apartamento no sábado, 14 de Novembro. Desde as 11:30 da manhã até quase às 2 da tarde falámos e ouvimos as canções. A impressão é que lhe agradaram e o surpreenderam positivamente. Vivi uns momentos de emoção. Perante a sua sincera aprovação do que fiz com os seus poemas, senti-me contente, um bocadinho orgulhoso e bastante satisfeito. Por uns instantes senti a alegria de ter feito um bom trabalho."

15 de Novembro de 1981


No próximo artigo retomaremos o livro de Antoni Batista, La Construcció d'un Cant.

domingo, 26 de julho de 2009

Inici de Càntic en el Temple

Como o decorrer do texto deixava entrever, trazemos a canção Inici de Càntic, com letra de Salvador Espriu. É a 25ª canção de Raimon na caixa de música.


Epê onde figura a primeira gravação de estúdio de "Inici de Càntic" (Edigsa, CM 132, 1966), cujos arranjos, a cargo do grande orquestrador Francesc Burrull, soam aquém da urgência do texto, retirando-lhe a sua grandiosidade e reduzindo-o a uma pálida e até quase anedótica imagem da intencionada pelo poeta. Note-se, e isto é uma crítica, que as restantes canções padecem do mesmo. Tentativa de passar a censura? A verdade é que bem diferentes foram as intenções de Raimon ao regravá-las no futuro.


A segunda versão de estúdio, incluída no Lp "Cançons de la Roda del Temps", (Edigsa, CM 164, 1966). Disco integralmente interpretado apenas à guitarra, numa leitura mais condizente com o ritmo e o objectivo do texto de "Inici de Càntic".


CD 6 da Integral.2000

Na impossibilidade de ouvirmos qualquer das primeiras versões de estúdio, partilhamos convosco a versão incluída na Integral. 2000. Pois parecem-nos ser estes arranjos os que mais força conferem ao poema.


Sem servir de desculpa para a nossa incapacidade de traduzi-lo, pensamos que uma escuta atenta pelos desconhecedores do Catalão - essa língua que, dizem amigos, nos soa familiar mas que, ao mesmo tempo, não se deixa agarrar - conseguirá provocar grande impacto. Com certeza algumas palavras nos escaparão, mas a comunicação não depende só dos códigos linguísticos. Também por isso, a canção "há-de ser sustentável, por si".
Eis então o poema:


Ara digueu: "La ginesta floreix,
arreu als camps hi ha vermell de roselles.
Amb nova falç comencem a segar
el blat madur i amb ell, les males herbes."

Ah, joves llavis desclosos després
de la foscor, si sabíeu com l'alba
ens ha trigat, com és llarg d'esperar
un alçament de llum en la tenebra!

Però hem viscut per salvar-vos els mots,
per retornar-vos el nom de cada cosa,
perquè seguíssiu el recte camí
d'accés al ple domini de la terra.

Vàrem mirar ben al lluny del desert,
davallàvem al fons del nostre somni.
Cisternes seques esdevenen cims
pujats per esglaons de lentes hores.

Ara digueu: "Nosaltres escoltem
les veus del vent per l'alta mar d'espigues".
Ara digueu: "Ens mantindrem fidels
per sempre més al servei d'aquest poble".

domingo, 19 de julho de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (I)

Raimon al IQS
Raimon al IQSDuas fotos do recital de Raimon no IQS
(imagens retiradas, respectivamente, do livro "Raimon - l'Art de la Memòria", de David Escamilla
e do Lp "Cançons de la roda del temps")



O recital no IQS, siglas do Insituto Químico de Sarrià, é uma grande manifestação ao ar livre do movimento estudantil. A ele assistem uns 4 mil estudantes; nenhum acto antifranquista tinha registado uma assistência daquela envergadura. A dimensão política de Raimon ganha penso com o seu papel de líder de massas e de elemento mobilizador. Segundo Josep Benet, "Raimon mobilizava, só a sua presença convocava muita gente, e isso, nos anos sessenta, só ele podia fazê-lo." O IQS é o seu primeiro recital substitutivo dos encontros proibidos. Era o mês de Novembro do ano 1966, mas este novo papel já se tinha começado a desenhar nos seus recitais em Paris, especialmente o que teve lugar no Olympia em 7 de Junho daquele ano, cujo recital, graças à retransmissão pela Rádio Europa N.1, ficou registado nos sulcos discográficos. E com ele também o Grande Prémio da Academia Francesa do Disco.

Raimon canta as "canções de luta" que em Espanha lhe proíbem ou censuram, recria novamente um cenário de reunião tipicamente político, onde o orador transmite mensagens que o público cúmplice consensualiza com o aplauso que interrompe a canção - feito inverosímil na música, que só se explica pela vontade política -, e procura frases que situem na luta as canções, para fechar o ciclo do compromisso.

É o caso da dedicatória de "Inici de càntic" aos universitários, intelectuais e artistas que se encerraram no convento dos Caputxins de Sarrià, em 9 de Março do ano lectivo de 1966, para constituir o Sindicato Democrático dos Estudantes da Universidade de Barcelona (SDEUB), que provocou um mal-estar ao franquismo. Salvador Espriu, autor da letra da canção, era um dos barricados e, como todos, detido e represaliado.

Eu não sou um homem político - confessa Raimon -, apesar do que muita gente quis fazer de mim, mas sou, sim, cidadão de consciência política, sei que existem problemas colectivos. Então, desde o meu ponto de vista e com as minhas canções, tentei sempre pôr a minha actividade ao serviço, em primeiro, da luta contra a ditadura, e depois, a favor da solidariedade, do lado dos oprimidos. Com todas as minhas canções, até com os poemas de Ausiàs March.