quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (X)

A irrupção de Raimon em Valência, paralela aos Setze Jutges, chama à atenção destes e dos seus pares. É considerado o recital fundador dos Jutges o que, com o título La Poesia de la Nova Cançó, tem lugar a 19 de Dezembro de 1961 no CICF (Centre d'Influència Catòllica Femenina). A 21 de Outubro de 1962, na Primeira Reunião da Juventude do País Valenciano, celebrado em Castelló, cantam Espinàs, Abella, Remei Margarit e Lluís Serrahima, acompanhados por um jovem guitarrista barbudo que versionava blues no conjunto Els Quatre Gats, Francesc Pi de la Serra. [O disco cuja capa aqui partilhamos é o primeiro do grupo, de 1963]
Raimon canta depois deles e Espinàs e Pi de la Serra ficam muito bem impressionados. Posteriormente, Joan Fuster acha que Raimon merece ser ouvido em Barcelona, uma espécie de consagração laica, e paga-lhe uma viagem de comboio. Espar em pessoa vai esperá-lo à estação do Passeig de Gràcia e mesmo muitos anos depois refere a chegada de Raimon como um acontecimento; na Catalunha estavam a préfabricar um género, mas o género autêntico vinha de Xátiva. Alojam-no em casa de Enric Gispert, músico e musicólogo que se tornará num dos grandes amigos e assessor imprescindível.

Em casa de Gispert, de Espar, de Jordi Nadal, de Manuel Ortínez..., Raimon deu a conhecer "Al Vent". Não sabe precisar em qual delas a cantou primeiro, mas Ortínez, nas suas memórias, diz que foi em sua casa. Deixou isso escrito e aqui fica, pela sua personalidade - homem de confiamça do presidente Tarradellas, conselheiro de Governo da Generalitat provisória -, mas o ano que dá, anterior à estadia que nos ocupa e muito próxima da data da composição, torna-a pouco verosímil. Ortínez escreve:

[A editora] AC criámo-la com Fuster, que eu tinha conhecido em fins dos anos 50, através de Joaquim Maluquer e com quem estabelecemos boa amizade. Numa daquelas primeiras reuniões, em minha casa, em 1960, Raimon canta pela primeira vez em Barcelona as estrofes - tão apaixonadas - de "Al Vent", a canção que o catapultaria.

Raimon canta na Festa de Santa Llúcia, organizada pelo Òmnium Cultural para atribuir os prémios mais importantes das letras catalãs, o Sant Jordi (de romance) e o Carles Riba (de poesia. 13 de Dezembro de 1962, Hotel Colom. Foi uma espécie de coitus interruptus, se nos permitem uma piada em jeito valenciano, porque as hostes começariam a queixar-se de uns gritos que não as deixavam dormir; de maneira que o Raimon cantor nascia predestinado ao facto de que a intolerância o mandasse calar. Dois dias depois, debuta oficialmente no Fòrum Vergés, numa sessão colectiva, como eram quase todas, ao lado de Grau Carol, Pere Cervera, Salvador Escamilla, Xavier Elías, Miquel Porter, entre outros, e sempre com a imprescindível colaboração do virtuoso guitarrista Quico Pi de la Serra, que finalmente acabaria por cantar canções fantásticas como "L'home del Carrer".





Raimon era diferente da canção popular feita até então, é preciso lembrar. É momento de dizer que também era diferente dos Jutges. Por muitas razões. Em primero, a proveniência local e social; Raimon não era nem barcelonês nem de família burguesa nem, por consequência, usava gravata. Depois, Raimon não canta para preencher um vazio cultural, como tarefa de serviço à cultura catalã nem como contestação ao regime; canta simplesmente porque lhe brota, como o ser humano que - diz Nietzsche - que "desata a falar" nos primórdios da protohistória, e isso explica-se com as palavras ut supra mencionadas relativas às necessidades biológicas ou fisiológicas. E, além disso, "Diguem no" ultrapassa pela esquerda os conteúdos dos Setzge Jutges. Enquanto estes, até então, seguiam de alguma forma a linha de Amades, passando pela chanson francesa, e o seu compromisso - que não é pequeno, conta! -, de reivindicação linguística, quando Raimon compõe "Diguem no" inclui revindicações sociais de classe e políticas. Raimon fala de repressão, de fome, de trabalhadores - palavra proibida pelo léxico franquista, que pôs em circulação aqueloutro de "produtores" -, de prisão... em plena ditadura, adicionar conteúdos sociais à língua catalã era multiplicar por dois o ataque e, portanto, o perigo.

domingo, 27 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (IX)

Benet, então muito chegado a Fèlix Millet e a Maurici Serrahima, começa a estabelecer contactos e mecenas e patrícios que tinham vindo a pagar livros que com muito trabalho passavam pela clandestinidade - famílias catalanistas como as jámencionadas e os Carulla, os Ballbé, os Carner, ou os Pujol - ajudam-no. O seu principal agitador, Josep Espar Ticó, a quem uma singela metátese de letras permite o bem achado e combativo alter de "Espartaco", lidera a fundação de uma empresa discográfica, EDIGSA, sigla de Editora General Sociedad Anónima, em nada suspeita, porque tudo o que levava SA era sinónimo de capital, e para o franquismo todo o capital era ofício dos seus. Porém, cedo descobririam que esse axioma não existia. Josep Espar tinha antecedentes policiais, fichado pela Brigada Social, temível polícia política da ditadura, que torturava com terrível frequência, e o que será anos depois chamado para dirigir a editora, Claudi Martí Pla, também acabaria por tê-los, antecedentes; seria um dos primeiros detidos da Assembleia da Catalunha (23 de Maio de 1971), principal organização de massas de luta contra o franquismo que juntava a maioria das tendências políticas, sociais, culturais e religiosas do país.

Edigsa reúne um conjunto de accionistas pequeno, de profissionais liberais, com um núcleo duro no que depois seria Convergència Democràtica de Catalunya, liderada pelo próprio Jordi Pujol e o seu cunhado, Francesc Cabana, os irmãos Espar, Josep e Ignasi, Ermengol Passola ou Salvador Casanovas, contrabalançados por pessoas mais à esquerda, como Francesc Vila-Abadal, socialista, o arquitecto Oriol Bohigas, próximo do PSUC, e o próprio Benet.

Coral Sant Jordi - Josep Maria Espinàs

Coral de l'Agrupació Catalana d'Itàlia - Grau Carol i Orquestra

Miquel Porter - Josep Maria Espinàs
Alguns dos primeiros Epês da Edigsa, lançados em 1962.


Edigsa constitui-se com um capital de 300 mil pesetas em finais de 1961, com sede em Vic, e a sua primeira gravação é um Ep do Coral Sant Jordi, dirigido por Orioll Martorell. O seu papel na difusão da canção catalã vai ser notável, visto com a perspectiva distante da história, mas os seus primeiros momentos vão ser uma confusão, porque haveria divisões pelo confronto entre línhas de pensamento diferentes do país e do mercado. Raimon acabaria por sair, e tê-lo-ia feito mais cedo se algumas cabeças mais bem assentes, como Josep Benet e Maurici Serrahima, não tivessem intervindo. Serrahima, que considera Raimon "um poeta, um músico e um cantor de primeiro nível", e lhe reconhece o mérito de "restabelecer também na Catalunha a ideia, por vezes difusa, de que falar Valenciano é falar Catalão", como o conta no quarto volume das suas memórias:

Agora os da Edigsa - a sociedade editora de discos que vingou muito pela actuação e popularidade dos Setze Jutges e, sobretudo, de Raimon, que foi posto no topo, por uma estranha inveja - ofereceram-lhe [a Raimon] a doação de uma acção, de cinco mil pesetas nominais, para que pudesse ter uma intervenção pessoal e, se fosse preciso, algum cargo.

Raimon nunca teria notícia da acção que Serrahima refere. Mais tarde, depois de encaixar que Raimon tinha vendido perto de 40 mil discos de um dos seus primeiros dois discos, cifra astronómica não só para a canção numa língua minoritária e proscrita, Serrahima diz:

Como é que se pode explicar que Raimon não vá a Paris e não tente cantar na televisão francesa ou na italiana, única maneira de superar o boicote da daqui? Sempre o medo, a angústia pelo que possa acontecer... O mal da Edigsa é que não foi concebida como um negócio normal; se não fosse assim, tiraríamos muito mais partido dele, e exploraríamos os elementos que a constituem; em primeiro lugar, Raimon.

sábado, 26 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (VIII)


Um dos primeiros recitais dos Setze Jutges e quando ainda eram só nove (antes de 1965): (da esquerda para a direita) Josep Maria Espinàs, Delfí Abella, Xavier Elies, Enric Barbat (fila de cima), Guillermina Motta, Remei Margarit, Maria del Carme Girau (ao centro), Pi de la Serra e Miquel Porter (em baixo).


Na Catalunha, um artigo de Lluís Serrahima inspirado em Josep Benet, "Ens Calen Cançons d'Ara" [Precisamos de canções de hoje], publicado na revista Germinàbit de Janeiro do ano de 1959, tinha descerrado uma nova etapa para a normalização do uso do Catalão através de um meio de grande audiência entre os jovens como era a canção moderna. Gente com escassas faculdades musicais, mas com muito siso, vontade e desejo de relançar o idioma próprio, como o escritor Josep Maria Espinàs, o crítico de cinema Miquel Porter ou o psiquiatra Delfí Abella, entram em cena e inventam Els Setze Jutges [os Dezasséis Juízes]. Canção distinta e em Catalão.

Josep Benet, advogado, historiador, alma de tantas iniciativas em prol da recuperação dos sinais da identidad do país, democrata-cristão independente favorável a uma luta unitária de fundo, que foi com toda a probabilidade o maior criador de ideias da história da luta contra o franquismo... Josep Benet tinha precisamente acabado de recriar as "sardanes" quando se depara com a necessidade de reencontrar linguagens de futuro que contactem com os jovens. Crê que a canção moderna pode funcionar, mas nem as tímidas tentativas de Josep Guardiola ou das Irmãs Serrano, de colocar caroços em língua vernácula - termo que era popular no Concílio Vaticano II - lhe serviam. Pensou primeiro no mote, "Ens calen cançons d'ara", e deu a Lluís Serrahima todo o guião do artigo que, por último, levaria aquele slogan como título.

A coisa foi crescendo, mas eram poucos, todos cantavam por serviço ao país, sempre como algo a saber a pouco, e o produto resultante, nas palavras do mesmo Benet, não passava de uma tradução do género francês e um pouco de trazer por casa. A irrupção de Raimon, segundo dizia Benet, muda o panorama. Raimon tem força, Raimon é músico, cria um produto bom, de autoria própria, susceptível de se internacionalizar e, em suma, Raimon é um intelectual, um homem com estudos e muito lido, capaz de estar ao lado de Fuster e de Espriu, de Miró e de Tàpies. Benet diz com segurança que se Raimon não tivesse surgido naquele momento, a Nova Cançó teria corrido perigo. "Raimon foi decisivo, foi uma grande sorte que tivesse aparecido naquele momento", concluia.

Concessão da Medalha de Ouro pelo Parlamento da Catalunha, em 13 de Abril de 2007, em reconhecimento pelo papel cultural (e social) iniciado pelos Setze Jutges. Quando dois dos membros fundadores, Miquel Porter e Delfí Abella eram já falecidos.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (VII)

O primeiro público de Raimon era nutrido, naqueles inícios, pelos seus amigos e pelos amigos dos amigos: Raimon dá a conhecer "Al Vent" numa taberna de Valência, Casa Pedro, sob um cartaz que proibia cuspir, a blasfémia e "la palabra soez" e, isso sim, era um altar de confissão onde concelebravam Joan Fuster e Vicent Ventura. Depois, este público cresceria e tornar-se-ia massivo, de um milhar de pessoas, de milhares. Isso vai ser possível graças ao produto, cimento sine qua non, mas também porque cedo vão surgir ao novo cantor vias de difusão da sua arte; isso sim, em nenhum caso comparáveis às que se teriam aberto se tivesse feito o mesmo, exactamente o mesmo, em Castelhano.

Quando as canções de "Pele" começam a voar - metáfora calculada, porque não há voo livre sem vento - e, no fundo, ele se permite cobrar cachés simbólicos de quarenta duros - na moeda actual, um euro e quarenta cêntimos -, um dos seus companheiros universitários, Eliseu Climent, convence-o a reclamar-se de um "Ramon" mais antigo, e baptiza-o desde Llull, Ramon / Raimon, e da profusão do nome Raimon ao mundo dos trovadores. Suporte literário que não trai o nome que os pais lhe tinham dado com tão escassa sorte, mas, que muito pouco usaram para gritarem por ele: os de casa chamavam-no Ramonet e os amigos "Pele"; depois e todos, Raimon. Ramon praticamente nunca existiu.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Uma pausa com... Pi de la Serra

Sabemos que de Pi de la Serra a última coisa que podemos esperar é alívios. A mordacidade e a ironia não não deixam fôlego para respirar.

No seguimento do último texto sobre Raimon (continuamos a traduzir o excelente livro "La Contrucció d'un Cant", de Antoni Batista), pareceu-nos adequada a canção de hoje. Está presente no fabuloso disco Triat i Garbellat, que é um álbum de 1971. Ou seja, muita água tinha já corrido e muita coisa tinha já mudado desde o começo da explosão da Nova Cançó, com Raimon, claro. Talvez a canção viesse um pouco tarde, mas, tendo vindo naquele ano, continuava a ser actual. Aqui está ela. Per tots vostés...

[Uma vez mais peço desculpa, mas não disponho dela em mp3, pelo que a ouvireis mais lenta... coisa que já expliquei para outras duas anteriores, de Raimon. A solução, redigo, é descarregarem-na (ir às ferramentas - opções de internet - definições - ver ficheiros e procurar a dita. Se os ordenarem por peso, encontá-la-ão com menos dificuldade.) e ouvirem-na nos vossos leitores.]


Francesc Pi de la Serra - Triat i Garbellat

Triat i Garbellat (Discophon, 1971)


Sóc el Millor

La pluja rellisca per sobre els taulats,
la mullena xopa els desemparats.
Sóc de la nova cançó. Sóc el millor, sóc el millor. /
A chuva resvala sobre os telhados,
a humidade empapa os desamparados.
Sou da Nova Cançó, sou o melhor, sou o melhor.


La lluna es "reflecta" sobre el mar lluent,
la ciutat és plena, l'aigua va caient.
Sóc de la nova cançó. Sóc el millor, sóc el millor. /
A lua reflecte-se sobre o mar luzente,
a cidade está cheia, a água vai caindo.
Sou da Nova Cançó, sou o melhor, sou o melhor.


Les gotes que cauen d'amunt cap a baix
esclaten a terra fent bassals i xaf!
Sóc de la nova cançó. Sóc el millor, sóc el millor. /
As gotas que caem de cima para baixo
estalam na terra, fazem charcos e xaf!
Sou da Nova Cançó, sou o melhor, sou o melhor.


Jo canto, i la pluja cau desobedient,
i la gent rellisca efectivament.
Sóc de la nova cançó. Sóc el millor, sóc el millor. /
Eu canto, e a chuva cai desobediente,
e a gente resvala efectivamente.

Sou da Nova Cançó, sou o melhor, sou o melhor.

El món és injust, qui ho va dir no ho sé.
Jo, ara que canto, m'ho passo molt bé.
Sóc de la nova cançó. Sóc el millor, sóc el millor. /
O mundo é injusto, quem o disse não sei.
Eu, agora que canto, estou a passar muito bem.
Sou da Nova Cançó, sou o melhor, sou o melhor.


Domino la rima i toco molt bé.
Si és moda queixar-se jo sóc el primer.
Domino "dos" llengües amb naturalitat,
castellà, català, amb gran dignitat.
Sóc de la nova cançó. Sóc el millor, sóc el millor. /
Domino a rima e toco muito bem.
Se é moda queixar-se eu sou o primeiro.
Domino "dos" línguas com naturalidade,
Castelhano, Catalão, com grande dignidade.
Sou da Nova Cançó, sou o melhor, sou o melhor.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (VI)

É quando termina o segundo curso da carreira que o seu irmão Rafael lhe oferece a guitarra, instrumento de que Raimon sempre tinha tido inveja, o fruto proibido de um músico de banda. Com a guitarra nas mãos, os acordes que tinha ido aprendendo acompanham-no no grito motorizado e sugerem-se outros sons, outras palavras que vão completar a primeira canção. Facto muito especial se nos lembrarmos que não estamos a falar de um país normal: Raimon canta na sua língua e ainda não numa línguaa cultivada para a idade que tem. Canta na língua do povo, aquela que Joan Maragall reclama no seu maravilhoso "Elogi de la Paraula". Mas é uma língua que então apenas se pode falar "na intimidade", que é o meio no qual vão continuar a falar os franquistas até depois da sua legalização como "co-oficial" a partir dos estatutos de autonomia.


Pino Donaggio - Canta en Català (EMI, 1966)
Cortesia do blogue amigo El Rincón del 45

Joan Fuster afirma com segurança que o facto de cantar em Catalão num universo onde apenas se ouvia cantar em qualquer outra língua - Castelhano, Inglês, Francês o o Latim eclesiástico - já desperta o interesse de um público com preocupações intelectuais, para lá das lúdicas. Raimon faz uma canção distinta e também, com esta, contribui para criar um público distinto. O público que se interessa por Raimon não tem nada que ver com o consumidor de música que se adjectivava como "moderna", para distingui-la da "clássica". Um género novo altera todo o ecossistema: público, meios e sistemas de comunicação, gostos e, também, a mesma evolução das espécies pré-existentes, para continuar na terminologia da sustentabilidade. Quero dizer que até os cantores mais insossos terão de fazer esforços para que se os valorize como cantautores, que é o nome com o qual os entomólogos, não sem um sem um grande exame de divisões, baptizariam a criatura. Naturalmente, o diccionário normativo de Pompeu Fabra não admitia "cantautor", e os acólitos - Espriu comparava o Fabra ao Alcorão - protectores da sua pureza não podiam sequer pôr-se de acordo em que havia algo de novo não previsto pelo pobre Fabra, que não era nenhum Júlio Verne. Surgem, portanto, cantautores ful [i.e. de merda, não autênticos] sob as pedras, vocalistas de plástico convertem-se, e para fazer ver que a língua catalã tinha passado das catacumbas aos palácios do império, como numa rendição do Édito de Milão, a última geração de rendidos do têxtil faz com que até cantores estrangeiros gravem as suas canções no idioma de Tirant.

Capa e contracapa de um Epê com canções de quatro cantores italianos a cantarem em Catalão:
Rita Pavone, Gianni Morandi, Jimmy Fontana e Donatella Moretti (RCA, 1966)

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (V)

Numas declarações dessa pré-história a Jesús García de Dueñas, Raimon dizia:

Em Espanha não existe uma tradição da canção popular. Podia ter havido com as canções da guerra civil, mas tudo isso, infelizmente, perdeu-se. Houve uma tentativa, a de García Lorca (canções populares espanholas que recolheu, harmonizou para piano e para acompanhar La Argentinita), mas não nos enganemos: isso era muito minoritário e partia de uma mistificação de base. Agora que temos? Canções que nos falam de como vais, como é bonito o campo, que bem que vamos de secas, dá-me a mão, não me dês a mão, que olhos tens e etcetera, etcetera. Aqui não há qualquer motivo de interesse sobre o qual notar uma evolução. A mim, particularmente, interessa-me a canção francesa.

Raimon tinha ouvido Brassens, mas à sua maneira, não mais nenhum Brassens que o da austeridade essencial de voz e guitarra, na altura sem contrabaixo, e na ideia de que as letras tivessem um conteúdo e se aproximassem a ser poemas cantados, se bem que nuns poemas especiais em função, que já eram escritos para uma funcionalidade que não a original de serem lidos ou recitados; Raimon começa, portanto, a cantar mais preocupado com os textos que com as músicas, ao dar saída à sua paixão pela literatura. Havia, portanto, uma poética - num primeiro sentido - maior em Brassens que em Raimon. Mas tampouco havia Brassens no primeiro Raimon, ou, em suma, no conteúdo das letras. Brassens explicava situações e Raimon pensava em voz alta.
Aquela preocupação com as letras, dizer alguma coisa e dizê-lo bem dito, vai ser uma força motriz da Nova Cançó. Josep Pla destaca, naqueles primeiros anos, o valor de Raimon como poeta; agrada-lhe tanto que pensa que os textos das suas canções são de Joan Fuster. Quando descobre que Raimon as faz sozinho, escreve: "Na actualidade [1966] Raimon é uma das chaves da sensibilidade popular do país, sobretudo no mundo que emerge. É o seu grande poeta, um grande poeta". Não será preciso dizer que Pla era - é - o grande escritor. Uma referência incontornável na história da literatura catalã.

É difícil falar de influências de Raimon nos seus começos, mas é inevitável tentar explicar de onde brota "aquilo". Quando Raimon faz "Al Vent", diria que nem sequer tinha em mente a melodia da flauta que tocara; isso viria mais tarde. Raimon canta tal como lhe sai a voz poderosa que tem, isso sim, com o fiato bem entranhado pela escola de "sopradores" das bandas; e se por acaso o seu canto se lembra, remotamente, alguma coisa é o seu canto gritado desde as profundezas do corpo e da alma, é ao blues e ao flamenco, que não obstante responde por cante jondo, por aspiração fonética de hondo, fundo. Retomaremos este assunto, mas quando nos detivermos na música. Por agora enunciamos apenas o mínimo para contextualizar o fundo cultural numa viagem de moto de um jovem estudante que tira partido estético do vento.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (IV)


Capa da Totes les Cançons (10 discos) (Belter)


Quando prepara a edição completa da sua obra até então (1981), intitulada Raimon. Totes les Cançons, deixa para o último disco as primeiras gravações, que quer despojadas de arranjos, apenas com os bordões de um contrabaixo a ritmar a melodia da voz e o acorde da corda da guitarra. É o Raimon fiel às origens e diria que recolhendo uma das suas primeiras influências sérias na maneira de entender a canção, a de George Brassens, que passaria toda a sua carreira apenas acompanhado pelo contrabaixo de Pierre Nicolas.

Brassens, com Jacques Brel e Léo Ferré, eram dos escassos cantores com pretensões literárias que Raimon tinha ouvido até então, e a sua maneira de entender o género da canção popular vai, sem dúvida, chamar-lhe a atenção, mas no singularíssimo caso de Raimon - "inimitável e irrepetível", segundo Espriu - não se pode falar tanto de influências como do background, o qual se tinha ido acumulando no lóbulo temporal do cérebro: as missas gregorianas dos clérigos; Machín e Nat King Cole, Jorge Negrete e Irma Vila, Belafonte e os boleros que tinha mamado da rádio; todo o repertório da banda, miscelânia heterogénea de cordas transposta aos metais do campo sinfónico e as múltiplas charangas próprias; a respeituosa audição dos primeiros clássicos; as work songs e o gospell norte-americanos; o jazz de Louis Armstrong, especialmente os seus premiados espirituais, um disco actualmente quase impossível de encontrar no lifting do CD, The Good Book, gravado em 1938...

Brassens fazia aquele tipo de canção popular que contrastava com o que então chegava até cá, era o que Umberto Eco qualificaria como a "canção distinta". Era uma canção diferente da que se enternizava nas listas de êxitos, que respondiam à terminologia inglesa de hit parade, e se era diferente em forma e conteúdo, era-o também na finalidade e sê-lo-ia nos circuitos. Nada a ver com a música pop convencional da época dos conjuntos importados da cultura anglo-saxónica, e muito menos com os subprodutos mal apelidados de modernos que por aqui grassavam, fossem o Dúo Dinámico, a Lita Torelló ou a daninha tonadilleta - segundo diminutivo de toada: tonadilla, tonadilleta - de Manolo Escobar ou Juanito Valderrama, cujos melismas metiam medo. Joselito já era letal.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (III)

Quando saímos de Xátiva - conta Raimon -, "Al Vent" não existia, e quando cheguei a Valência, a canção já estava feita. Eu ia atrás, não sei conduzir grande coisa, e ia atrás, com a guitarra que o meu irmão me tinha oferecido. E com os três acordes que sabia naquele momento, saiu-me "Al Vent", como um grito sobretudo fisiológico... O vento baita-me na cara, e, sem saber como, comecei a pensar, a procurar uma ordem diferente, aquela vontade de adolescente de encontrar um lugar no mundo.
Depois escrevo-a e canto-a de imediato, com os amigos, na universidade. A primeira pergunta que todos fazem é: de quem é a canção? Era impensável que fosse uma canção autóctone e que fosse minha, pensavam que era uma tradução do francês ou do inglês, porque aqui não se faziam coisas assim. E um valenciano e em Catalão...!

Manuel Sacristán, no seu prólogo ao livro Raimon. Poemes i Cançons, faz uma bela descrição de "Al Vent". Parágrafo único para uma multiplicidade de conceitos que se encontram, se relacionam e se reencontram, na mais pura e bem conseguida praxis do materialismo dialéctico. O tradutor de Lukácks presta honra à sua Estètica, o mais belo canto à beleza entoado a partir da filosofia marxista:

"Al Vent" é uma canção de estrutura simples e bastante tradicional. O refrão - o grito que dá nome à canção - é uma expressão subtilmente directa de vitalidade juvenil, de entrega ao mundo e da tentativa de penetrar nele por quem não está preso pelas algemas classificadoras da divisão do trabalho. Como sempre, a impressão do que é muito directo, da espontaneidade, é fruto do trabalho do poeta consigo mesmo e com o meio expressivo; no primeiro é melhor ainda não nos determos; o segundo manifesta-se no uso de uma sintaxe de justaposição para tapar algo muito mais difícil: uma "análise" selectiva - bem sugestiva pela sua concreção subjectiva, causa provável do êxito magnetizante desta canção - que enumera as partes do corpo que estão (segundo o poema) expostas ao vento: a cara, o coração, as mãos, os olhos. O jovem que correu ao vento - de moto ou a pé, não se sabe se para libertar a energia, se para encontrar alguma coisa - fica convencido pela tangível descrição como a expressão da sua experiência, e interessa-se pelo menos, no caso em que não o compartilha, pelo sentido que Raimon lhe dá: procura. Estas duas estrofes, formal e musicalmente idênticas, abrem caminho a três versos contrastantes pelo que dizem e pela música. Enquanto o primeiro elemento significativo da canção é a afirmação simples de uma experiência de vida e de um dos seus sentidos - aquilo que Fuster apelidaria de "aspiração metafísica" - , esta breve terceira estrofe é um registo meditativo da experiência oposta, do mal e da tristeza, a qual põe em dúvida a primeira afirmação vital: porque " a vida pode ser esse choro". O final da canção volta a afirmar a experiência vital positiva, a primeira estrofe, e faz assim uma síntese dos dois momentos anteriores. O que é peculiar desta fase do canto de Raimon é que não há qualquer discurso - nem discursividade musical - que dê lugar à reafirmação da vida; há uma adversativa abrupta: "la vida pot ser eixe plor, / pero nosaltres / al vent". E a melodia inicial reaparece sem qualquer cambiante. A razão de viver do adolescente é a sua vitalidade.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (II)

Raimon ia atrás. Levava a moto um amigo da universidade, das Astúrias, a quem ele ia explicando a sua paisagem muito íntima; Raimon não aprenderia a conduzir até que uma doença padecida por Annalisa, felizmente ultrapassada, o obrigaria a fazê-lo. Apesar disso, não gosta nada e apenas se põe ao volante para ir comprar o pão e os jornais quando passa algum tempo na casa que tem em Xábia, aberta aos quatro ventos. O vento, a propósito, sopra a favor da criatividade de Raimon, pelo menos desde aquela viagem juvenil de Vespa: a palavra "vent" aparece treze vezes na obra que analisámos de Raimon, sem contar as referências nos versos de outros autores que musicou, a começar com "Veles e Vents". Completa a canção indo do particular anatómico para o geral, num salto espectacular. A cara, o coração, as mãos, os olhos... são uma espécie de pára-brisas natural; e, tudo junto, "al vent del món" ("Ao vento do mundo"). Depois, a viagem material vira a iniciática, a procura dos grandes ideais universais, partindo de uma realidade triste que [Raimon] começava já a identificar com o termo "nit" (noite), mais desenvolvido na canção que tem simplesmente esta palavra e o artigo. "La Nit" data de 1964 e durante muito tempo abrirá os recitais de Raimon. A noite é o cenário e graças a esta metáfora, a noite vai ser associada de uma maneira generalizada ao franquismo. Raimon, já desde a sua primeira canção, funde a noite / franquismo como ponto de pertença, mas na ideia dinâmica de a superar. Neste caso, na busca dos ideiais e com a força da energia eólica.


"Al Vent" é uma canção que nasce de um grito. O impacto físico do ar em movimento proporcionado pela velocidade tanto produz uma exclamação como levanta um aeroplano e, pouco a pouco, vai crescendo uma gravidez de letra e música. Raimon definia as suas primeiras canções como "mais fisiológicas, expressões de pura necessidade e sem ter o que quer que seja em atenção"; emprega a mesma palavra "fisiológicas" numa entrevista com Francesc Baiges; e ainda noutra, com Toni Rodríguez, usava uma terminologia similar, "necessidade biológica de me expressar", igual que com Álvaro Feito. Uma boa definição para as canções que se seguem a "Al Vent" e que vão conformar o seu primeiro disco de curta duração, aquilo a se chamava extended play ou, simplesmente, EP, editado no ano de 1963: "Al Vent", "La Pedra", "Som" e "A Colps", com uma bonita foto de Oriol Maspons na frente, que recuperámos para a capa deste livro.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

IV - La Cara al Vent (I)

[Acabava de cumprir dezassete anos (Espanha, 1963), e um dia, à saída de uma reunião na paróquia, um "padre vermelho", daqueles que chamávamos de vocação tardia - o padre Manolo -, ofereceu-me um pequeno disco com quatro canções, que lhe tinham mandado de uma comunidade cristã de Barcelona. "Está cantado em Catalão - disse-me -, mas vais ver, é muito bom e tem muita força".
Cheguei a casa, fechei-me no meu quarto e ouvi, já não me lembro quantas vezes, aquelas quatro canções; quatro canções lograram revolucionar todos os meus sentimentos.

Fernando G. Lucini, in "Crónica Cantada de los Silencios Rotos"
]


O despido percurso de Xátiva a Valência do ano 59, provavelmente num fim-de-semana, vai tornar-se mais decisivo que as suas excursões "para o norte, onde dizem que a gente é mais limpa e nobre, culta e rica, livre, estimulante e feliz", segundo um dos mais conhecidos poemas de Salvador Espriu, que, por acaso, Raimon nunca musicou. O poema dá-nos a medida do fascínio que o estrangeiro suscitava, olhando para cima, por parte dos habitantes de uma terra triste e pobre em recursos e habitada por castigados sobreviventes de uma guerra civil. Mas no voo doméstico de Xátiva a Valência, numa moto de marca Vespa, hoje pérola de antiquários e fetichistas da pré-história do motor, Raimon engendra a sua primeira canção, "Al Vent".

Primeiro disco de Raimon (1963), disco histórico que incluía as míticas "Al Vent", "La Pedra", "Som" e "A Colps". "Al Vent" é a sétima canção que podemos ouvir na caixa de música. Não é versão original, deste disco, com muita pena minha, que ouvimos, mas a que cantou no Palácio dos Desportos de Madrid, em 5 de Fevereiro de 1976, e que está registada no disco El Recital de Madrid.Não vou traduzir esta canção. O "crit" de Raimon basta por si para nos despertar o que ela significa. Continuaremos a falar dela, em próximos artigos.]

Al vent,
la cara al vent,
el cor al vent,
les mans al vent,
els ulls al vent,
al vent del món.

I tots,
tots plens de nit,
buscant la llum,
buscant la pau,
buscant a déu,
al vent del món.

La vida ens dóna penes,
ja el nàixer és un gran plor:
la vida pot ser eixe plor;
però nosaltres

al vent,
la cara al vent,
el cor al vent,
les mans al vent,
els ulls al vent,
al vent del món.

I tots,
tots plens de nit,
buscant la llum,
buscant la pau,
buscant a déu,
al vent del món.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (VI)

Com Paris visto, vai querer ir a Londres, mas a façanha já era demasiado complicada para conseguir com duzentos "duros", tendo em conta que então era impossível atravessar a Mancha de carro. De maneira que gastou o dinheiro na viagem e, uma vez na ilha, foi arranjar trabalho, como tantos e tantos estudantes. Vai trabalhar numa obra, com um martelo-pneumático que, apesar de lhe castigar as mãos, vai permitir-lhe ganhar umas maquias que vai investir em livros e moda... Toda a gente já reparou que Raimon cuida da forma como se veste. Inglaterra mandava durante os anos sessenta, e depois seria a Itália, circunstância que lhe facilitaria a tarefa de combinar cores, se fosse preciso com valentia.

Uma viagem menos estimulante vai ser a que iniciaria em 1962, a Ronda. Ronda é um lugar muito bonito, um monte de história pendurada numa escarpa cobiçada por combatentes, imortalizados, digamo-lo assim, pela famosa série televisiva Curro Jiménez, toreiros e cantaores, mas Raimon não vai poder disfrutar dela porque a sua missão era obrigada: o serviço militar, penoso e longo. Raimon pretendia fazer as milícias universitárias, mas seria suspenso por razões óbvias de expediente não académico. Naturalmente, ele, avant la lettre, não acreditava nas pistolas nem na utilidade do exército, e ter de passar por isso durante alguns verões de jorrante suor na Penibética, para acabar feito em tropa, não lhe agradavam nada, mas as milícias abreviavam o serviço e permitiam estudar. Tampouco vai ser possível: a "catalogação" de contrário ao sistema tinha que se pagar naturalmente naquele exército que o tinha criado. E Raimon terá que somar aos Verões das milícias uma outra na mili normal em Paterna.

A terceira grande viagem é a mais pequena. O trajecto doméstico de Valência a Xátiva, que Raimon fazia praticamente cada fim-de-semana dos seus anos universitários que aqui encerramos. Deixamo-lo licenciado em Filosofia e Letras, no ramo de História, e o contraponto de tristeza por o seu pai não ter podido vê-lo, que morreu em 1961. Para um trabalhador de esquerda, era um grande orgulho poder ter um filho na universidade.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (V)

Valência é qualificada como "uma cidade difícil" na canção "Andreu, Amic", dedicada ao escultor Andreu Alfaro, que é conhecedor de todos os seus becos. A "ciutat difícil" na qual Raimon vive os seus anos de universitário está retratada naqueles versos:

"Dels ponts del riu i de les pedres velles, /
"Das pontes do rio e das pedras velhas
des clares matins, de la llum dels baladres. (...) /
das manhãs claras, da luz dos loendros. (...)
Carrers estrets i espais poc metafísics, /
Ruas estreitas e espaços pouco metafísicos,
tot l'entrellat d'una ciutat difícil, /
todo o intrigante de uma cidade difícil,
indiferente i secularment puta." /
indiferente e secularmente puta".


Curioso que a única palavra grosseira do cuidadoso Raimon literário esteja escrita não no sentido estrito, mas no sentido triste que o termo tem, ... em Valência. Fosse como fosse, Valência cidade não aparece com boa imagem nas canções de Raimon; "ainda bem que os duros não se deram conta", dir-lhe-ia um amigo em jeito de piada, segundo conta em Les Hores Guanyades. A outra menção surge em "L'Única Seguretat" e lembra, a lembrança é imelhorável porque foi no dia em que conheceu Annalisa: "El goig d'haver-te trobat / un dia fa ja molts anys / a la ciutat bruta i plana". ("A emoção de te ter encontrado / um dia, já há muitos anos, / na cidade bruta e plana").

Daquela Valência, ao fim e ao cabo, Raimon destaca a zona gótica de casarões com musgo, a catedral e a galeria, a rua de Cavallers e o restaurante Bermell, ponto de encontro dos progressistas intelectuais, que mantém ainda o nome de outrora e alguns pratos de interesse etnogastronómico, como agora o esgarraet, variedade de salada de bacalhau que seria admitida pela Academia Valenciana da Língua, digamos, e o Atum de areia, conservado em água e sal como as anchovas, conhecido desde a Idade Média e sob a influência do qual vai chegar desde Alacant até às costas de Tarragona como ingrediente do xató.

Valência foi o porto onde Raimon ancorou o barco que conduzia Ausiàs March gráças ao impulso do vento nas velas. Mas faria várias viagens. Com mil pesetas poupadas durante todo o ano, em 1960 vai a Paris à boleia com dois amigos, Joan Joan e Vicent Àlvarez. Vai dar azo a uma das suas grandes vontades, passear e mirar, e apaixona-se por aquela cidade com uma intensidade que dura até hoje. Raimon precisa de ir a Paris de vez em quando, percorrer o Bairro Latino e comer nos bistrot, aqueles pequenos restaurantes que servem boa comida e nunca para desenrascar, com uma garrafa de um vinho sempre negro.

domingo, 13 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (IV)

À parte Dolç e Fuster, do meio académico valenciano Raimon guarda memórias especiais de Antonio Ubieto, Josep M. Jove, Joan Reglà e Miquel Tarradell. O doutro Reglà, discípulo de Jaume Vivenç Vives, era experto na Coroa de Aragão, mouriscos e bandoleiros, e deixou obra entre 1958 e 1971, ano em que vai ser o núcleo fundador da nova Universidade Autónoma de Barcelona, que vai acolher tantos professores considerados "desafectos" ao regime franquista, exilados ou simplesmente expulsos. Tarradell vai deixar obra em Arqueologia e História Antiga, e durante a sua estadia no País Valenciano dirigiu escavações importantes. Fora da docência, Tarradell fazia política, sobretudo religando as complexos redes dos Países Catalães, parte sul. E acolhia Raimon em reuniões familiares.

Também fez amigos, naturalmente, sobretudo do ambiente catalanista, como Eliseu Climent, que depois fundaria a editora Tres i Quatre e se tornaria num grande impulsionador de múltiplas iniciativas culturais como agora Bloc Jaume I ou os Prémios Octubre, e Alfons Cucó, que o tempo faria historiador e poeta, e o dramaturgo e director Sanchis Sinisterra, e Josep Maria Morera. Vai ser naquele ambiente universitário que começa a amadurecer. A greve dos mineiros nas Astúrias em 1962 fez também despoletar uma greve e manifestações solidárias na Universidade de Valência, que vão levar à prisão diversos líderes estudantis amigos de Raimon. Daquela experiência vivida, filtrada pelo homem que diz não de Camus, nasce "Diguem No", a canção que se tornaria hino de luta contra a ditadura.

sábado, 12 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (III)

A universidade tinha-lhe ido engrandecendo a cultura, tanto pela sua avidez, quase voracidade, enquanto leitor, como por a biblioteca ser um lugar inevitável para se proteger do frio. Começa a ler Ausiàs March na colecção "Els Nostres Clàssics". No ano de 1959 comemorou-se o quarto centenário do autor de "Veles e Vents...", autor no qual se iniciaria Miquel Dolç, catedrático de Latim, que chegaria a decano quando Raimon já tinha abandonado as aulas. Dolç era um grande experto en Virgílio - diria que neste nosso modesto lugar, era "o experto" -, estudando-o e traduzindo-o, resgatando-o para a colecção "Bernat Metge", um dos tesouros mais importantes da cultura catalã, que, graças a Dolç, Raimon vai começar a folhear enquanto, em verdade, começava a ler numa língua que até então apenas era de uso privado. A Eneida inicia-se cantando - o verbo cantar conta!, é o primeiro que se conjuga nesta tão magna obra, terceira palavra do primeiro verso hexassilábico - "as armas e o herói"... mas Virgílio também faz soar o antecedente mais directo do flautim, a "caramella". Aprofundar a métrica latina, de versos que eram verdadeiros compassos, vai dar a Raimon os precisos trinta por cento que lhe faltavam para fazer tão bem o que começava a tentar por aqueles dias: cantar. Raimon vai descobrir na métrica clássica, recuperada por Ausiàs, a música que nascia das palavras.

Falávamos de percentagens: a melodia do flautim; o tempo de Xátiva; a música da fonética, uma fonética que não era senão a de Ausiàs, como anos depois lhe faria notar Martí de Riquer, quando lhe aconselhava que simplesmente o pronunciasse com a sua pronúncia. Vai começar a fazê-lo em público naquela comemoração universitária da morte de March. No salão nobre, Raimon vai recitar "Elogi a Teresa".

Os quatrocentos anos da morte de Ausiàs vão ser vir a Raimon para conhecer uma outra personagem importante na sua vida, Joan Fuster, que vai ser quem o vai induzir a ler Espriu, ao oferecer-lhe "La Pell de Brau". Aqui está um acaso interessante. Fuster é o elo entre os dois poetas mais musicados por Raimon, Ausiàs March e Salvador Espriu. Graças à comemoração de Ausiàs, conhece Fuster, graças a Fuster, conhece Espriu; e fica em jeito de anedota que Espriu, ao ouvir "Veles e Vents" pela primeira vez, com a solenidade de quem se sente herdeiro da tradição poética na língua catalã, vai dizer a Raimon: "Em nome do senhor March, muito agradecido".


A amizade de Raimon com Fuster cresceria. Pouco depois de se conhecerem já compartilhavam uma tertúlia de universitários, que se reunia cada segunda-feira e à qual também assistia o compositor Vicent Garcés, que inculcava em raimon noções de harmonia teórica. Porque a prática já a sabia toda de tocar na banda.

A primeira coisa que li de Fuster - explica Raimon - foi o seu esplêndido livro El Descrèdit de la Realitat. Li-o numa edição castelhana e, depois, quis saber coisas sobre o autor, que me pareceu apropriado. Conheci-o e abriu-se-me um mundo de uma grande força racional, de uma grande ironia, de uma inteligência muito apurar e de uma grande sensibilidade como crítico literário e homem de cultura, como um grande intelectual. Assim começou a grande amizade que para mim foi importante de todos os pontos de vista e que é uma daquelas coisas que levamos sempre connosco para toda a vida.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (II)

Raimon parte para Valência para estudar. O bacharelato correu-lhe bem. É quando pensa que tem possibilidades dramáticas e planeia entrar no Real Conservatório de Música e Declamación: o seu irmão Enric, que trabalhava num bar na capital, e o amigo “Cote”, que estudava filosofia, vão ser as suas primeiras bases. Depois, passou a viver em pensões e colégios.

Cedo, porém, se apercebe que começar a estudar teatro não é começar a fazer de galante, e que é preciso partir muita pedra, coisa que o aborrece de sobremaneira. Isso, de qualquer forma, era a que ele estava habituado, e em idades tão precárias uma pessoa quer ser simplesmente aquilo que mais lhe apetece dentro da pequena mostra de artes e ofícios de que se teve conhecimento. Contudo teria sorte, e iria descobrir, com quem diz, por acaso, uma disciplina que não imaginava qual. Um dia, indo buscar o seu amigo “Cote”, à Facultat de Lletres, entrou numa sala, para ver o que por lá se dizia. E concluiu que era bem mais interessante que a técnica de declamação que lhe ocupava o precioso tempo dedicado a formar-se; precioso em todos os sentidos, já que para Raimon estudar era mesmo um luxo, como o era, em geral, para todas as famílias de trabalhadores: era necessário dinheiro para a matrícula, os livros e as despesas, e se ainda fosse pouco deixavam de ir, que um trabalho já começava a oxigenar as precárias economias domésticas.

Raimon matricula-se em Filosofia e Letras e, graças às boas notas, consegue uma bolsa do Sindicato Español Universitário (SEU) que o ajuda economicamente. Tampouco o gasta, porque o SEU também oferece refeições aos estudantes; a oferta gastronómica, porém, é um triste rancho, muito mau, mas Raimon, com as trocados que junta, consegue um jantar com os amigos ou uma noite de conversas regadas com os combinados que acabavam de chegar do transoceânico: a Cuba livre.

“A les butxaques d’uns pantalons vells” (“Nos bolsos de umas calças velhas”), onde guarda as lembranças sentimantais, tem o leite que cada manhã o seu irmão Enric lhe deixava na travessa, para complementar vitaminicamente uma dieta pouco equilibrada.
A universidade ainda não era massificada. Na Rua da Nau, num curso presidido por Joan-Lluís Vives, cursavam o primeiro ano comum apenas uns setenta estudantes, e a partir do terceiro, quando Raimon se especializa em História, não mais que uns vinte. Isso fez com que os professores conhecessem os alunos pelo seu nome, que a docência fosse boa, e que, em suma, houvesse uma relação familiar que permitia que o catedrático repreendesse discretamente “Pele” quando chegava tarde de manhã porque tinha lido até altas horas da noite ou porque algum professor o tinha convidado para jantar em sua casa e a conversa se tinha estendido.

Raimon tem aquela fluidez de conhecimento de quem tem uma permanente curiosidade intelectual e um raciocíno metódico, sério, exigente, organizado; de quem nunca toma por boa a evidência demasiado fácil, que dá sempre a volta à abordagem que primeiramente assumiu para ver as coisas de uma maneira diferente; ainda que o negue, Raimon teria dado um muito bom político, porque a res publica requer esta sistemática de raciocínio; mas licenciou-se em História. Corria o ano de 1963, quando ainda não tinha completado os vinte e três anos. Conselhos posteriores do doutor Jordi Nadal, muito influente em gerações de economistas, pretenderam orientá-lo, tendo-o enviado a um curso de especialização, com tudo pago, a Aix-de-Provence, que até lhe foi de grande utilidade. Mas não na direcção académica, na qual Nadal lhe augurava bom futuro: decidiria que não se dedicaria à História. Aí também faria um bom amigo, que depois faria uma importantíssima carreira política, alcalde de Barcelona, conselheiro da Generalitat e vice-presidente do Governo Espanhol, Narcís Serra, e iria descobrir Mozart graças a uma representação de “Cosi fan tutte” e musicaria pela primeira vez um poema de [Salvador] Espriu, “Cançó del Capvespre”.

[As duas capas de discos (de 1963 e 1966) que vemos aqui em baixo são as duas primeiras vezes onde apareceu o tema de hoje. Salvador Espriu é um nome maior da poesia catalã e peço desde já desculpa por ter traduzido este seu poema.
Mais uma vez - e para oferecer o melhor aos que me lêem - a canção na caixa de música (a número 6) é a original, de 1963. Porém, como a de ontem, sofre do tal problema. Para a ouvirem em condições basta copiarem a que ficará na pasta dos ficheiros temporários da net, após ela ter sido completamente carregada.
Esta preciosidade que tenho-a há algum tempo no ordenador e não fazia sentido não ser divulgada. Porque os arranjos conseguidos caracterizam excelentemente o tom paisagístico do poema. Simplesmente fantástica!]



Cançó del Capvespre



S'enduien veus d'infants
el sol que jo mirava. /

Vozes de crianças levaram
o sol que eu olhava.
Tota la llum d'estiu
se'm feia enyor de somni. /

Toda a luz do Verão
me dava vontade de sonhar.

El rellotge, al blanc mur,
diu com se'n va la tarda. /

O relógio, no muro branco,
diz como vai a tarde.
S'encalma un vent suau
pels camins del capvespre. /

Um vento suave abranda
pelos caminhos do entardecer.

Potser demà vindran
encara lentes hores
de claror per als ulls
d'aquest esguard tan àvid. /

Talvez amanhã ainda
venham horas lentas
de luz para os olhos
deste olhar tão ávido.

Però ara és la nit. /
Mas agora é noite.
I he quedat solitari
a la casa dels morts
que només jo recordo. /

E fiquei sozinho
na casa dos mortos
que só eu lembro.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

III - Una Ciutat Difícil (I)

No ano de 1957, quando Raimon não tinha ainda feito os dezassete anos, deixa Xátiva. Deixa-a traumaticamente porque tinha ficado claro que ali se tinha urbanizado a sua paisagem interior, porque ali havia uma família bem vivida e bons amigos. Quando tudo isso fica para trás, necessariamente se tem vontade de regressar, como está patente na "Cançó de la Mare", quando termina com um reiterativo "jo sé, jo sé, jo sé, jo sé / que tornaré al carrer Blanc". É o mais lógico quando para trás está tudo e à frente não há nada, mas o tempo iria enchê-lo, e esta expectativa é um motor de explosão que faz avançar a máquina humana, apesar de todas as forças centrípetas.

Uma das suas primeiras canções explica demasiado bem o que passava pela cabeça criativa de "Pele". Não podia senão chamar-se "Disset Anys".

"Se'n va anar i tres cançons de Raimon", disco de média duração de 1963 que contém pela primeira vez a canção de hoje, Disset Anys .

[Devido a incompatibilidades técnicas, esta canção, a versão original, do disco cuja capa aqui expomos, está um bocadinho mais lenta que o tempo real. Isso decorre de ter sido gravada em formato wma, e é um problema que não consegui resolver. Resta-nos a alegria de podermos descarregá-la e então ouvi-la como deve ser. Vale ainda mais a pena se tivermos presente que é, nesta altura da história, aceder a esta gravação original através da rede. Felizmente que parece ser apenas esse o problema, pelo que aparecerão algumas mais a padecer desta enfermidade.]

Disset Anys

Tots els somnis trencats. /
Todos os sonhos quebrados.
Tots els castells per terra. /
Todos os castelos desabados
Tot allò que hem viscut
tan endins s'ha enfonsat. /
Tudo aquilo que vivemos
Para tão fundo se afundou.

Què s'ha fet dels 17 anys? /
Que resta dos 17 anos?
Què s'ha fet d'aquells ulls,
d'aquelles mans tan pures?
Que resta daqueles olhos,
daquelas mãos tão puras?

Què s'ha fet,
què s'ha fet...?

Tant de cel se n'ha anat,
tanta mort al darrera
de tot cor. /
Tanto céu partiu,
tanta morte para trás
de todos os corações.

Tant de plor,
tant de plor... /
Tanto choro,
tanto choro...

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (VI)

Em Xátiva, durante “les passejades nits d’estiu” (“as passeadas noites de Verão”), Raimon escutava os ensaios das bandas, que se tornam numa música de fundo urbana muito original. Na povoação havia duas bandas, a Velha e a Nova. O pai de Raimon estava ligado à Banda Nova ou Música Nova, tendo sido seu presidente, e inculcou nos seus filhos o amor pela música. Ali Raimon aprendeu solfejo desde os cinco anos com o celebrado método de Hilarión Eslava, que permanecia como bom material didáctico desde 1846, e então começa a tocar oboé. Porém, fazer soprar a dupla palheta requeria um esforço dos músculos faciais que lhe provocava hemorragias nasais, facto pelo que lhe vão destinar um instrumento menos difícil. Passa então para o flautim, que emite a mais delicada das acuidades e que Beethoven incorporou no conjunto sinfónico. Raimon aprende a tocar um repertório muito versátil, desde pasodobles e outros géneros dançáveis até versões de Mozart, Beethoven, Schubert, Bizet e Wagner, que o metal exemplificava até atingir o resultado. Paralelamente cantava num coro e começa a educar a voz.

Destes conhecimentos essencialmente melódicos parte a base do grande construtor de melodias, e [Raimon] destaca ou reivindica este facto quando, no recital de comemoração dos trinta anos da canção “Al Vent”, em 1993, no dia de Sant Jordi no Palau Sant Jordi, volta a tocar flautim na banda La Lira Ampostina.
Para lá da banda, expressão urbana, o jovem Raimon está abertamente exposto ao mundo: ouve música popular e agrada-lhe especialmente o blues, Billie Holiday, Ray Charles, também Lorenzo González e os boleros, os Platters, naturalmente - “Only You” -, e o que já denota uma certa extravagância, as canções francesas e italianas, que descobre respectivamente graças sobretudo a Juliette Gréco e Domenico Modugno. Quando tem catorze anos, começa a pôr discos na Ràdio Xàtiva, o que lhe oferece um espectro mais amplo de possibilidades de audição e isto começa a estimular-lhe o gosto pela vocalização, esforçada quando tem de registar anúncios num Castelhano que não domina, como agora “jabón el oso”, mas que virá a desenvolver melhor em grupos de teatro amadores.

Quando se muda de Xátiva a Valência, a primeira cidade que conhece para estudar, dá-se conta, por contraste, que da povoação levou outra coisa. Não é fácil de discernir porque não cabe nem na pasta nem na memória: é intangível. Mas será um elemento fundamental para uma pessoa que acabará por fazer música. Uma determinada ideia de tempo.

Há muitos tipos de tempo e medem-se com réguas diversas: calendário, agenda, relógio, cronómetro, a campainha dos monges e os anos-luz dos astrónomos… O tempo musical, que não podemos chamar doutra forma que no Italiano que subjaz a este termo, tempo no singular, tempi no plural. O tempo é basilar na música, o tempo do metrónomo, tão essencial como o som, e se o som do metal e do vento o leva Raimon de Xátiva, também leva o tempo. Explica-o claramente em Les Hores Guanyades: “O meu ritmo vital é ainda o mesmo de quando vivia em Xátiva”, destacando a lentidão e muitas outras coisas que não importa agora transcrever. Mais adiante, no mesmo diário, reclama o valor do tempo: "O movimento, na música, isso a que muitos músicos chamam tempo, é importantíssimo".


Sem esta percepção muito clara do tempo, ligada ao metrónomo alto que nos daria o tempo parado de Xátiva do fim do século XX, a música de Raimon não se poderia explicar razoavelmente. O tempo musical de Raimon vai permitir que o tempo verbal não seja nem curto nem longo, que as palavras se entendam e encontrem também na música a plenitude do tempo que também elas levam dentro. Mas disso falaremos mais à frente, como falaremos da constante reflexão que moveu Raimon sobre esta ideia que tanto trabalho deu a filósofos e relojoeiros.
É nesta altura que Raimon está a criar a realidade que mais tarde serão aqueles versos: "He deixat mar maré / sola / a Xàtiva al carrer Blanc", que abrem o capítulo. No seguinte vamos até Valência.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (V)

Raimon começa a aprender a ler com uma professora, doña Nieves, uma ex-monja que dá em sua casa aquilo a que chamavam "a escola dos cagões", forma coloquial do infantário. É depois que, já a saber ler e as quatro regras, faz a primária nos claretians (que vol dir aixó?) e o bacharelato no instituto que tem o nome do pintor de Xátiva Josep de Ribera.

Fora do colégio-convento, lá onde Jesús Fernández Santos diz liricamente que a lua estaca, "extramuros la luna se detuvo", segundo [Manuel Vásquez] Montalbán uma das melhores frases da literatura espanhola, Raimon procura compulsivamente o saber. Teria que satisfazer o seu desejo de curiosidade fora de aulas e lê tudo o que lhe ia parar às mãos, que não era assim tanto - pouco mais que os romances do Oeste da série Rodeo, e Unamuno, Baroja, Azorín..., na "Colecção Austral" - por culpa da precariedade cultural daqueles "anos de penitência", nas palavras de Carlos Barral. Vai ao cinema sempre que pode e fala muito com os amigos, "parlàvem de tot, i del bé i del mal" ("falávamos de tudo, e do bem e do mal"). Que resta de tudo isso? As vastas referências presentes nas suas canções, as leituras posteriores de Camus, Sartre e Kierkegaard, e amigos que foram resistindo ao passar do tempo, Joan Joan, que os anos fizeram com que se parecesse com o Sean Connery, Josep-Lluís García, "Cote", e Josep-Ramon Torregrossa, "Torre", que vive em Madrid mas que se desloca sempre que pode para ir aos recitais de Raimon.

Sincronicamente ao contacto com os livros, começa a receber influências musicais. O País Valenciano é terra de bandas, de orquestras de metal que tanta divulgação de música têm feito. A maioria dos melhores músicos de instrumentos de sopro que dirigem as orquestras pelo Estado fora são valencianos, e explicam-no com o dito hiperbólico seguinte: um músico valenciano dá voltas à volta do piano. Que faz? Procura o buraco.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (IV)

A mudança de símbolo paisagístico, ao longo do rio Albaida, que deixa no sul todos os ermos enquanto nos arrancamos para norte "tots aquells arbs fruiters / que ja fa tants anys que no veig", mas que continuam a nutrir-se da função clorofílica nos socalcos cerebrais; "Al meu cervell que deconec", tema do ano 1986 que descreve uma vez mais a paisagem que nos ocupa, acentuando o pinheiro num último verso:

Al meu cervell que deconec /
No meu cérebro que desconheço
arrossar de mel obren portes /
arrozais de mel abrem portas
a llunes plenes juganeres, /
a luas cheias brincalhonas
que entre tarongers i llimeres /
que entre laranjeiras e limoeiros
i bresquilleres i ametllers, /
e damasqueiros e amendoeiras,
van perseguint totes les ombres /
perseguem todas as sombras
darrere els pins e els garrofers, /
por trás dos pinheiros e as alfarrobeiras,
els pins e els garrofers /
os pinheiros e as alfarrobeiras

A luz também é essência daqueles quadros. Veremos mais adiante que a luz aparece quinze vezes nas suas canções. Fala da sua luz de Xátiva no diário Les Hores Guanyades: "Neta i suau a l'hivern, esclatant i densa a l'estiu" ("Limpa e macia no Inverno, tórrida e densa no Verão"), "la llum que he estimat" ("a luz que amei"), para concluir numa citação mais geral.
Volta o recrudescer das abcissas e ordenadas espaço (Xátiva) / tempo (infância-adolescência) no tema "Al meu país la pluja", também supracitado. Uns versos a capella introduzem o tema; é como um regresso ao cancioneiro tradicional, mas feito por Raimon: "Al meu país la pluja no sap ploure: / o plou poc o plou massa; si plou poc és la sequera, / si plou massa és un desastre". Na verdade no País Valenciano sentem na pela as ciclotimias da meteorologia, a última foi por causa da barragem de Tous; apenas umas horas evitaram que Raimon a sofresse, porque estava em Xátiva a rodar um programa de televisão.



Nesta canção de pretexto meteorológico, Raimon faz-nos entrar na sua escola, assunto recorrente nos da sua geração e muito bem retratado em El florido pensil e numa boa colecção de filmes; no âmbito da canção, mas em registo humorístico, La Trinca escreveriam "El meu col-legi", muito polarizada numa obsessiva educação religiosa que Raimon também vai sofrer desde que, dos seis aos dez anos, foi à doutrina (pronunciada "dotrina", como ele lembra), e depois, mais intensamente, no colégio Cor de Maria dels claretians, vulgarmente "os padres". Ali havia missa diária e as novenas e rosários pertinentes, preparações à comunhão e confirmação, mês de Maria, primeiras quintas-feiras, e liturgias tutti quanti para fazer com que o céu escutasse as preces que o padre Claret mandava fazer, que talvez o merecesse apenas por ter de ouvir as confissões de Isabel II, de certeza escabrosas.

A escola do franquismo era uma primeira correia de transmissão do nacional-catolicismo, um entrave de pensamento do já citado Primo, puro fascismo, como se viu, e o integrismo preconciliar que punha à altura do espírito o peso do baixo ventre. Coincidiam um e outro, a Igreja e o Estado, digamos, na teoria do medo como principal motor da inactividade dos cidadãos paroquianos: medo do inferno, medo da prisão - a Inquisição, que unificava um e outro com uma solução de continuidade entre a fogueira terrena e o fogo eterno, não foi abolida senão em 1834, mas o índex de livros proibidos que tantas causas tinha levado ao obscuro tribunal duraria até 1962! Em suma, como Raimon conclui, "res no vàrem aprendre a escola" ("não aprendemos nada na escola"). E este "nada" o concretiza nas características da sua paisagem, das quais temos uma referência com um último verso dedicado à língua, outro dos temas recorrentes na temática raimoniana.



Entre la Nota i el So, 1984

[A quarta canção presente na caixa de música, Al meu país la pluja, foi incluída pela primeira vez no disco de 1984, Entre La Nota I El So. E é também essa primeira versão que trazemos aos vossos ouvidos. Haveria melhores, talvez. Mas, se se justificar, ainda por cá traremos outra. Ao vivo, obviamente.]


Al meu país la pluja

Al meu país la pluja no sap ploure: /
No meu país a chuva não sabe chover:
o plou poc o plou massa; /

Ou chove pouco ou chove demasiado;
si plou poc és la sequera, /

Se chove pouco é a seca,
si plou massa és un desastre. /

se chove demasiado é um desastre.

Qui portarà la pluja a escola? /
Quem levará a chuva à escola?
Qui li dirà com s'ha de ploure? /

Quem lhe dirá como se deve chover?
Al meu país la pluja no sap ploure. /

No meu país a chuva não sabe chover.

No anirem mai més a escola. /
Nunca mais iremos à escola.
Fora de parlar amb els de la teua edat
res no vares aprendre a escola. /

Excepto o falares com os da tua idade
nada aprendeste na escola.
Ni el nom dels arbres del teu paisatge,
ni el nom de les flors que veies,
ni el nom dels ocells del teu món,
ni la teua pròpia llengua. /

Nem o nome das árvores da tua paisagem,
nem o nome das flores que vias,
nem o nome dos pássaros do teu mundo,
nem a tua própria língua.

A escola et robaven la memòria,
feien mentida del present. /

Na escola te roubavam a memória,
faziam mentira do presente.
La vida es quedava a la porta
mentre entràvem cadàvers de pocs anys. /

A vida ficava à porta
enquanto entravam cadáveres de poucos anos.
Oblit del llamp, oblit del tro,
de la pluja i del bon temps,
oblit de món del treball i de l'estudi.
"Por el Imperio hacia dios"
des del carrer Blanc de Xàtiva. /

Esquecimento do raio, esquecimento do trovão,
da chuva e do bom tempo,
esquecimento do mundo do trabalho e do estudo.
"Pelo Império para deus"
desde a Rua Branca de Xátiva.

Qui em rescabalarà dels meus anys
de desinformació i desmemòria? /

Quem me ressarcirá dos meus anos
de desinformação e desmemória?

Al meu país la pluja no sap ploure:
o plou poc o plou massa;
si plou poc és la sequera,
si plou massa és un desastre.
Qui portarà la pluja a escola?
Qui li dirà com s'ha de ploure?
Al meu país la pluja no sap ploure.


É esta canção, em suma, a parte recitativa, a reflexão que tinha anunciado em Les Hores Guanyades:

Na escola que tivemos, universidade incluída, não nos ensinaram a ler nem a ouvir. Ensinaram-nos a reconhecer as letras que formam as palavras e pouco mais. Não nos ensinaram a reconhecer os sons e os silêncios que formam a música. E foi de tal maneira assim que tenho a sensação de passar a vida a aprender a ler e a escutar. E não falemos de olhar nem do olfacto: nestes campos o "analfabetismo" é total.

A interiorização do medo, em parte alimentado na escola, vivida numa família de republicanos perseguidos, é também uma das temáticas de Raimon, e disso temos sinais nos primeiros movimentos da sua vida. O pai entra e sai da prisão, o menino Raimon passa a rotina de ir vê-lo, a mãe chega a ser ameaçada de que lhe rapariam o cabelo, como penalização e escárnio públicos...

domingo, 6 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (III)

A rua Branca é a entrada da cidade com o monte onde se encontra o castelo. Da Rua Branca para cima vai o pequeno "Pele", mais que para baixo, para o centro e a a sua avenida principal, o choupal, alameda, que às tardes levava com grandes quantidades de folhas secas que faziam as delícias das crianças, que nelas esfregavam os pés. Da Rua Branca ao castelo havia muitas esquinas para encontrar fantasias e pôr em prática a mais divertida das possibilidades de ser puto: atirar pedras.


A Rua Branca é o down town da paisagem sentimental da infância de Raimon, também muito presente na sua obra. A alma da casa é a mãe, uma matriarca obrigada pelas circunstâncias de uma viuvez muito precoce. Depois, os irmãos e amigos que com ela compartem a espera do regresso, como a canção o lembra, "germans i amics / que em volen / i esperen, com ma mare, / que jo torne com abans"... Raimon é o mais novo dos cinco irmãos. O mais velho chamava-se Pepe, mas todos, e até o próprio Raimon, lhe chamava "bigode"; Pepe morreria no fim dos anos noventa. O segundo era Antoni, Toniet, mas Raimon não chegou a conhecer por culpa de uma morte prematura. Seguiam-se-lhes Rafael e Enric.

Duro para Raimon seria, em 1987, mudar a conjugação do presente para o passado a um outro dos temas que fazem de Dolors Sanchis motivo de canção: "Ma mare ho guarda tot", "Ma mare ho guardava tot", verso de "Molt Lluny". Dolors Sanchis morreria muito idosa, com noventa e três anos, depois de um tempo com problemas de ossos e mobilidade, facto que para uma pessoa muito activa era sempre razão de angústia, mas que suportaria com paciência. Raimon fazia tudo o que podia, com o seu bom humor, para a ajudar, ligava-lhe, ia vê-la... "Molt Lluny" é uma canção que faz referência precisamente à data de que estamos a falar. Raimon encontra, nesta canção, "les nits que ens passàven / caminant, amics, / pels carrers de Xàtiva".

Umas pinceladas de Joan Fuster descrevem aquela Xàtiva na plenitude literária da sua prosa. É um belo parágrafo do seu livro Raimon, publicado em 1964, em resultado de uma conversa durante o percurso ferroviário de Xàtiva a Barcelona, que a tracção a vapor fazia durar até sete horas:

A Rua Branca de Xàtiva é, sobretudo, os arredores: limite com o descampado, cosido, num bairro de má urbanização, rente às muralhas do castelo. As casas são de planta baixa e de um só piso, limpas, claras. A vizinhança, uma vizinhança de lavradores e artesãos, não nega ao rito valenciano - talvez árabe - da calçada, e as fachadas esbanquiçadas reverberam rudemente ao sol. Quatro passos mais adiante, estende-se a Xàtiva dos brasões floridos e dos cognomes duradouros: aqui não há senão "povoação [povo]". Hoje é "povo" calado e conformado, trabalhador e irónico. A paisagem dá uma sensação de paz rotinária, de vida vivida sem pressa: crianças que jogam à bola, pequenos trabalhadores trémulos, anciãos na xacota ou a jogar à visca, uma loja ou uma barbearia melancólicas, mulas cansadas que voltam das cargas... A casa da esquina é a dos Pelegero: pequena, vulgar, pouca coisa.

Fala também Raimon deste pequeno universo que cresce, mas na memória, quando refere "el llaurador del meu poble" ("o lavrador do meu povo") como metáfora que tem mais à mão para uma das primeiras canções de amor, "Treballaré el teu Cos", composta quando tinha apenas vinte e quatro anos e ainda não tinha decoberto o suficiente os recursos inegotáveis da retórica. A paisagem de então está também imortalizada noutros versos. "Al mur blanc dibuixada / l'ombra de la llimera. / El llebeig despentina / el pentinat dels arbres" (despenteia o penteado, aqui, vinte anos antes, já sabia muito, de retórica). A árvore mediterrânea por excelência, o pinheiro, está presente em duas canções: "el verd suau dels pins llepats de pluja" ("o verde macio dos pinheiros limpos despidos pela chuva") e "de verd de pins, / de mar lluent" ("de verde de pinheiros, / de mar reluzente"). Uma ampliação da flora em "Octubre dolç": "Bedolls, llorers, oms i faigs, castanyers" ("Bétulas, loureiros, ulmeiros e faias, castanheiros").


E a reivindicação de tudo junto materializada com "no vull oblidar que sóc de poble" ("não quero esquecer que sou do povo", acrescentada à celebérrima asserção "qui perd els orígens / perd identitat" ("que perde as origens / perde a identidade"), que amiúde passa por anónima a partir da extensão por sinédoque. É natural e lícita a extrapolação de povo a país, mas é claro que Raimon se refere a Xàtiva, já que o texto e o contexto da canção da qual forma parte este par de pentassílabos - o decassílabo de Ausiàs [March] partido pela pausa interna em dos hemistíquios! -, não são alusivos a outra realidade. Depois, quando escreve o diário Les Hores Guanyades, Raimon clarifica este sentido de pertença limitada que não é mais que a posta em prática que "nação" vem de "nascer" e "pátria" de "pai":

Passámos por Xátiva à vinda (de Alcoi), por Bixquert, Albaida, Adzaneta, Benigánim, Bellús. Nomes próprios que me trazem uma enorme carga vital. Amendoeiras, ameixoeiras, pessegueiros em flor. Paisagem de secura, e a horta à espera no vale de Xátiva. Cenário das minhas mais íntimas vivências, lembranças de todo o meu viver, da luz que amei, das cores dos meus sonhos, espaço da minha aprendizagem do mundo. Que desejo imenso de ficar parado no tempo, naquele espaço e entre a gente da que nasci e que estimo, agora, desde a grande cidade que é Barcelona! Sensação de despojamento de sentimentos perante a paisagem da minha infância. Regresso nítido do puto brincalhão e feliz que fui, amigo e apaixonado. Poder de evocação da fonética, quão macio alcance da língua! Eu não tenho uma ideia de pátria; tenho, em vez disso, sentimento de pertencer a um grupo humano concreto. E este sentimento renova-se através da linguagem, desde a música do falar quotidiano da gente que ficou onde eu nasci. A língua é o meu possível patriotismo.

"Jo Vinc d'un Silenci" é o máximo expoente da descrição do mundo interior registado no vinil analógico dos anos de infância e juventude. Desta canção saem as "classes subalternes", referência social de entrada, as praças, as ruas, cheias de "xiquets que juguen / i de vells que esperen", a animação habitual que nas vilas e nos bairros se manifesta em plenitude, as pequenas oficinas, o campo, a divisão "on comença l'horta / i acaba el secà", que se visualiza nitidamente desde o cimo do castelo de Xátiva.


El Recital de Madrid, 1976

[Jo Vinc d'un Silenci foi primeiramente registada no disco "El Recital de Madrid", no dia 5 de Fevereiro de 1976, e é essa mesma a terceira canção que disponibilizámos na caixa de música]

Jo Vinc d'un Silenci


Jo vinc d'un silenci /
Eu venho de um silêncio
antic i molt llarg /
antigo e muito longo
de gent que va alçant-se /
de gente que se vai levantando
des del fons dels segles
desde o fundo dos séculos
de gent que anomenen /
de gente a que chamam
classes subalternes, /
classes inferiores,
jo vinc d'un silenci /
eu venho de um silêncio
antic i molt llarg. /
antigo e muito longo.

Jo vinc de les places /
Eu venho das praças
i dels carrers plens /
e das ruas cheias
de xiquets que juguen /
de crianças que brincam
i de vells que esperen, /
e de velhos que esperam,
mentre homes i dones /
enquanto homens e mulheres
estan treballant /
estão a trabalhar
als petits tallers, /
nas pequenas fábricas,
a casa o al camp. /
em casa ou no campo.

Jo vinc d'un silenci /
Eu venho de um silêncio
que no és resignat, /
que não é resignado
d'on comença l'horta /
de onde começa a horta
i acaba el secà, /
e acaba a secura
d'esforç i blasfèmia /
de esforço e blasfémia
perquè tot va mal: /
por que tudo vai mal:
qui perd els orígens /
quem perde as origens
perd identitat. /
perde a identidade.

Jo vinc d'un silenci /
Eu venho de um silêncio
antic i molt llarg /
antigo e muito longo
de gent sense místics /
de gente sem místicos
ni grans capitans, /
nem grandes capitães
que viuen i moren /
que vivem e morrem
en l'anonimat, /
no anonimato
que en frases solemnes
no han cregut mai. /
que nunca acreditaram
em frases solenes.

Jo vinc d'una lluita
que és sorda i constant, /
Eu venho de uma luta
que é surda e constante

jo vinc d'un silenci
que romprà la gent
eu venho de um silêncio
que a gente romperá

que ara vol ser lliure
i estima la vida, /
que agora quer ser livre
e ama a vida,

que exigeix les coses
que li han negat. /
que exige as coisas
que lhes foram negadas.

Jo vinc d'un silenci
antic i molt llarg,
jo vinc d'un silenci
que no és resignat,
jo vinc d'un silenci
que la gent romprà,
jo vinc d'una lluita
que és sorda i constant.