segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (IV)

A mudança de símbolo paisagístico, ao longo do rio Albaida, que deixa no sul todos os ermos enquanto nos arrancamos para norte "tots aquells arbs fruiters / que ja fa tants anys que no veig", mas que continuam a nutrir-se da função clorofílica nos socalcos cerebrais; "Al meu cervell que deconec", tema do ano 1986 que descreve uma vez mais a paisagem que nos ocupa, acentuando o pinheiro num último verso:

Al meu cervell que deconec /
No meu cérebro que desconheço
arrossar de mel obren portes /
arrozais de mel abrem portas
a llunes plenes juganeres, /
a luas cheias brincalhonas
que entre tarongers i llimeres /
que entre laranjeiras e limoeiros
i bresquilleres i ametllers, /
e damasqueiros e amendoeiras,
van perseguint totes les ombres /
perseguem todas as sombras
darrere els pins e els garrofers, /
por trás dos pinheiros e as alfarrobeiras,
els pins e els garrofers /
os pinheiros e as alfarrobeiras

A luz também é essência daqueles quadros. Veremos mais adiante que a luz aparece quinze vezes nas suas canções. Fala da sua luz de Xátiva no diário Les Hores Guanyades: "Neta i suau a l'hivern, esclatant i densa a l'estiu" ("Limpa e macia no Inverno, tórrida e densa no Verão"), "la llum que he estimat" ("a luz que amei"), para concluir numa citação mais geral.
Volta o recrudescer das abcissas e ordenadas espaço (Xátiva) / tempo (infância-adolescência) no tema "Al meu país la pluja", também supracitado. Uns versos a capella introduzem o tema; é como um regresso ao cancioneiro tradicional, mas feito por Raimon: "Al meu país la pluja no sap ploure: / o plou poc o plou massa; si plou poc és la sequera, / si plou massa és un desastre". Na verdade no País Valenciano sentem na pela as ciclotimias da meteorologia, a última foi por causa da barragem de Tous; apenas umas horas evitaram que Raimon a sofresse, porque estava em Xátiva a rodar um programa de televisão.



Nesta canção de pretexto meteorológico, Raimon faz-nos entrar na sua escola, assunto recorrente nos da sua geração e muito bem retratado em El florido pensil e numa boa colecção de filmes; no âmbito da canção, mas em registo humorístico, La Trinca escreveriam "El meu col-legi", muito polarizada numa obsessiva educação religiosa que Raimon também vai sofrer desde que, dos seis aos dez anos, foi à doutrina (pronunciada "dotrina", como ele lembra), e depois, mais intensamente, no colégio Cor de Maria dels claretians, vulgarmente "os padres". Ali havia missa diária e as novenas e rosários pertinentes, preparações à comunhão e confirmação, mês de Maria, primeiras quintas-feiras, e liturgias tutti quanti para fazer com que o céu escutasse as preces que o padre Claret mandava fazer, que talvez o merecesse apenas por ter de ouvir as confissões de Isabel II, de certeza escabrosas.

A escola do franquismo era uma primeira correia de transmissão do nacional-catolicismo, um entrave de pensamento do já citado Primo, puro fascismo, como se viu, e o integrismo preconciliar que punha à altura do espírito o peso do baixo ventre. Coincidiam um e outro, a Igreja e o Estado, digamos, na teoria do medo como principal motor da inactividade dos cidadãos paroquianos: medo do inferno, medo da prisão - a Inquisição, que unificava um e outro com uma solução de continuidade entre a fogueira terrena e o fogo eterno, não foi abolida senão em 1834, mas o índex de livros proibidos que tantas causas tinha levado ao obscuro tribunal duraria até 1962! Em suma, como Raimon conclui, "res no vàrem aprendre a escola" ("não aprendemos nada na escola"). E este "nada" o concretiza nas características da sua paisagem, das quais temos uma referência com um último verso dedicado à língua, outro dos temas recorrentes na temática raimoniana.



Entre la Nota i el So, 1984

[A quarta canção presente na caixa de música, Al meu país la pluja, foi incluída pela primeira vez no disco de 1984, Entre La Nota I El So. E é também essa primeira versão que trazemos aos vossos ouvidos. Haveria melhores, talvez. Mas, se se justificar, ainda por cá traremos outra. Ao vivo, obviamente.]


Al meu país la pluja

Al meu país la pluja no sap ploure: /
No meu país a chuva não sabe chover:
o plou poc o plou massa; /

Ou chove pouco ou chove demasiado;
si plou poc és la sequera, /

Se chove pouco é a seca,
si plou massa és un desastre. /

se chove demasiado é um desastre.

Qui portarà la pluja a escola? /
Quem levará a chuva à escola?
Qui li dirà com s'ha de ploure? /

Quem lhe dirá como se deve chover?
Al meu país la pluja no sap ploure. /

No meu país a chuva não sabe chover.

No anirem mai més a escola. /
Nunca mais iremos à escola.
Fora de parlar amb els de la teua edat
res no vares aprendre a escola. /

Excepto o falares com os da tua idade
nada aprendeste na escola.
Ni el nom dels arbres del teu paisatge,
ni el nom de les flors que veies,
ni el nom dels ocells del teu món,
ni la teua pròpia llengua. /

Nem o nome das árvores da tua paisagem,
nem o nome das flores que vias,
nem o nome dos pássaros do teu mundo,
nem a tua própria língua.

A escola et robaven la memòria,
feien mentida del present. /

Na escola te roubavam a memória,
faziam mentira do presente.
La vida es quedava a la porta
mentre entràvem cadàvers de pocs anys. /

A vida ficava à porta
enquanto entravam cadáveres de poucos anos.
Oblit del llamp, oblit del tro,
de la pluja i del bon temps,
oblit de món del treball i de l'estudi.
"Por el Imperio hacia dios"
des del carrer Blanc de Xàtiva. /

Esquecimento do raio, esquecimento do trovão,
da chuva e do bom tempo,
esquecimento do mundo do trabalho e do estudo.
"Pelo Império para deus"
desde a Rua Branca de Xátiva.

Qui em rescabalarà dels meus anys
de desinformació i desmemòria? /

Quem me ressarcirá dos meus anos
de desinformação e desmemória?

Al meu país la pluja no sap ploure:
o plou poc o plou massa;
si plou poc és la sequera,
si plou massa és un desastre.
Qui portarà la pluja a escola?
Qui li dirà com s'ha de ploure?
Al meu país la pluja no sap ploure.


É esta canção, em suma, a parte recitativa, a reflexão que tinha anunciado em Les Hores Guanyades:

Na escola que tivemos, universidade incluída, não nos ensinaram a ler nem a ouvir. Ensinaram-nos a reconhecer as letras que formam as palavras e pouco mais. Não nos ensinaram a reconhecer os sons e os silêncios que formam a música. E foi de tal maneira assim que tenho a sensação de passar a vida a aprender a ler e a escutar. E não falemos de olhar nem do olfacto: nestes campos o "analfabetismo" é total.

A interiorização do medo, em parte alimentado na escola, vivida numa família de republicanos perseguidos, é também uma das temáticas de Raimon, e disso temos sinais nos primeiros movimentos da sua vida. O pai entra e sai da prisão, o menino Raimon passa a rotina de ir vê-lo, a mãe chega a ser ameaçada de que lhe rapariam o cabelo, como penalização e escárnio públicos...

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