segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Foi há 22 anos que ficámos órfãos

Imagem, reduzida, retirada daqui.


Vejam bem como as rádios, os jornais e, por arrastamento, nós, te esquecemos...

Vinde hoje enlaçados e de mãos dadas, rádios e jornais, que o mal está feito.
A cada dia que passa.

Não sejais hipócritas.
Não procureis alibis.

Se ao menos se esquecessem de ti apenas neste dia que hoje passa...
Se ao menos cobrissem de silêncio o teu nome neste dia que passa...

A excepção e a regra, não é?

A AJA tem reunido os discos onde surgem canções que cantaste ou compuseste.
Imagina só? Contam-se pelos dedos de muitas mãos...
E, sim, ainda estamos a desenterrar do buraco negro este disco, aquele disco...

Como tu, que gravaste uns disquitos,
parece que não damos muito valor a isso.

Pois não.
174 discos não têm qualquer peso nas rádios que nos dão música.
A música do entretenimento, do esquecimento, do não-pensamento.

Mas alguém se lembra de ti.



[Sabemos que é difícil - devido a questões contratuais, logísticas e outras que tais que podem ser resumidas em jogos de interesses e propriedades - reunir todas as canções que José Afonso gravou em nome próprio em nossa casa.
E sabe-o melhor quem já tentou.

Isto pode relançar a sempre procastinada - a quem vamos pedir contas? Ao governo? Não? Mas devíamos... - necessidade de reunir - conjugando esforços, ou se elas - as editoras - preferirem, interesses - toda a obra numa edição actual, contextualizada, disponível, renovável, reeditável... caramba! como os livros de bolso dos clássicos!!!

Como aqui há uns anos fizeram com o Carlos Paredes e com o Luís Goes
(adeus Valentim de Carvalho, que com a tua morte nos levaste o que é nosso...
a propriedade é um roubo! Percebeis agora o que Proudhon quis dizer com isto?) e hoje já não é possível...

Como em 94 fizeram com a obra do Adriano.

Como em países desenvolvidos se faz,
países que têm a dignidade de restituir o valor e a verdade históricas ao que na cultura de um povo deve ser indelével, inabalável, respeitado...

Olhemos para a França.
Sim, Jacques Brel era belga. Está todo disponível.
Georges Brassens... está disponível.
Léo Ferré... Está disponível.

E nem quero falar de Jacques Dutronc... disponível.

Olhemos aqui ao lado.
Raimon está vivo, sim. E tem a obra integral, regravada, é certo. Disponível.
Paco Ibañez, vivo, sim. E tem os discos todos disponíveis.
Lluís Llach, vivo, sim. E tem a obra toda disponível.
Serrat, vivo. Disponível. (Mau era! Aqui ao lado eram capazes de derrubar um governo se lhes tirassem o Serrat...)

E já nem falo de cantores menos conhecidos como Labordeta, Xavier Ribalta...

Sim, Pi de la Serra, cantor maldito... a esse nunca lhe farão justiça.
Não há justiça que lhe chegue...


E nós, tristinhos da silva, a carcomer a memória.
A rádio e os jornais, que, como canta o Zé Mário, um dos Pi de la Serra de cá (o outro é o Luís Cília...) "são pagos com bom dinheiro", ajudam-nos a devorar o nosso próprio corpo.
...]


Portugal:
Há quantos anos a vilipendiar a História?
Com que direito?
Quem?

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

VII - Crec que també és ma casa (II)

Os ítens especiais da "Cançó de la mare" são, em primeiro lugar, a saída do lugar e do seu entorno afectivo. Raimon dá o passo de sair do ecossistema que o tinha configurado e que temos visto forma parte do seu imaginário; não podia ser doutra forma, se damos o justo valor que a infância tem na criação da personalidade. Se Vázquez Moltalbán, um dos grandes amigos de Raimon, costumava explicar o trauma que supôs para ele, nascido no bairro de Raval, cruzar a Gran Via sem sair da mesma Barcelona, pensemos no salto à vara que supõe passar de uma povoação rural e secular muito longínqua, à grande conurbação metropolitana, numa época em que as distâncias ainda não se tinham encurtado graças às comunicações aéreas, do asfalto, do ferro, ou do cabo.

Em segundo lugar, encontramos um corpo ideológico definido pela recusa da injustiça em manifestações já concretizadas em "Diguem no" como o medo, o sangue e a fome. E a definição inequívoca de dizê-lo na sua língua, com a expressão "maltractada llengua" que se tornará numa referência verbal de que a sociedade se apropriará e a fará popular. Tal como a célebre frase "qui perd els orígens, perd identitat". Uma apropriação sem dúvida indevida, mas que, ao contrário do plágio, encoraja as suas vítimas: que há de mais bonito que dar por popular uma frase própria?
Raimon faz uma declaração de princípios sobre o Catalão a pensar nas intenções de genocídio linguístico do franquismo, mas fá-lo quando o monolinguísmo como característica fundacional da Nova Cançó começa a ser questionado e transgredido. A partir de um ponto de vista alargado, a reflexão de Raimon sobre a língua vai mais além, tem uma profundidade mais ampla. "A língua é o meu possível patriotismo", escreve em Les hores guanyades. "É um activo que encontras sem ter procurado, como a família ou o lugar onde nasces, e isso informa-te o pensamento". Raimon fala da língua como algo quase pré-natural e, sem dúvida, pré-político, não meramente instrumental.

Finalmente, um terceiro elemento da "Cançó de la mare", que se liga ao primeiro, é a inscrição cívica em Barcelona. O significado de "irmãos" estende-se para lá do significado biológico, como se estende também o de "casa".

Quando Raimon e Annalisa chegam a Barcelona para aí se instalarem, ficam uma semana na Pensión Antibes, muito perto da Monumental, um lugar frequentado pelas quadrilhas de toureiros, e a seguir encontram um piso no passeio de Maragall, um último piso não muito grande mas que bem guarnecido que depois será duplex graças a uma pequena escada e que consome pouco espaço, e que contrapesa o ruído com muita luz e uma vista para a belíssima quinta renascentista Torre Llobeta e, ao fundo, para o parque do Turó de la Peira, quando ainda era uma monte com pinheiros, isso sim, no mais rançoso nacionalcatolicismo, coroada por uma cruz enorme. Viverão em Maragall até 1978.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

84 anos

Foto retirada daqui

[Ao lado podemos ouvir "Canto de Rua",
na gravação ao vivo em Frankfurt, em 1983,
acompanhado por Fernando Alvim]


Que são 84 anos?

Enquanto houver formas de reprodução do teu legado sonoro,
enquanto houver sensibilidade no coração das gentes,
enquanto os novos que trazemos ao mundo sentirem em ti algo distinto e tão nosso,
enquanto o tempo passar sem ficarmos indiferentes...

Quando te ouvimos, amigo
(tu tratavas toda a gente por amigo...)
É algo que fica no fundo,
Como uma pedra atirada ao poço durante a nossa infância,
E nós, demasiado pequenos, não podemos ir lá tirá-la.

A água marítima e fluvial desta terra saberá sempre ao que espelhaste em nós,
Tu que extraíste delas, água e terra,
- com a tua "pequena música", dizias -,
a sua humidade e o seu respirar,
o sentir das pessoas que as atravessavam,
os dias de trabalho,
os queixumes da vida,
inquietações...

As ruas dessas cidades litorais, fluviais,
antigas como a memória indizível de um povo, de um lugar,
como os torvelinhos da história...


84 anos não são nada, Carlos.
Sabemos que ficarias contente por saber isso.
E eu e nós aqui to dizemos:
Vamos continuar a sentir a força da tua respiração,
nos mil dedos com que tocavas a tua inseparável companheira.

Parabéns, Carlos.
Ainda és uma criança.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

VII - Crec que també és ma casa (I)

A "Cançó de la mare" é das que têm valor acrescentado no repertório de Raimon. Há nela uma síntese de vivências pessoais e uma manifestação ideológica; formalmente, em plena primeira etapa, quando Raimon cultiva a força do grito e do acordo, esta peça, datada de 1965 - fase da qual estamos a falar - endereça os versos e, sobretudo, põe-nos numa melodia muito bem construída, que terá continuidade enriquecedora, especialmente a partir de "Veles e vents".


["Cançó de la mare" é uma canção capital na obra e sensibilidade raimoniana.
É a 24ª canção na caixa de música ali ao lado.
A versão que podemos ouvir foi editada em 1968, no disco abaixo representado.
Escusamo-nos de traduzir estas simples e profundas palavras. Porque não é necessário.
Se escutada com atenção, não é necessário.]

Cançó de la mare / Diguem no (SG, Discophon - 1968)


O texto desta canção, cujo título exacto é "He deixat ma mare", é o que se transcreve.

He deixat ma mare
sola
a Xàtiva al carrer Blanc.
Ma mare que sempre
espera
que torne com abans.

He deixat germans i amics
que em volen
i esperen, com ma mare,
que jo torne com abans.

He vingut ací
perquè crec que puc dir-vos,
en la meua estimada llengua,
paraules i fets
que encara ens agermanen.

Paraules i fets
que encara ens fan sentir
homes entre els homes.

Paraules i fets
que encara ens agermanen
en la lluita contra la por,
en la lluita contra la sang,
en la lluita contra el dolor,
en la lluita contra la fam.

En la sempre necessària lluita
contra el que ens separa
i ens fa sentir-nos
a tots nosaltres estranys.

He deixat ma mare
i els meus germans.

He deixat els amics i la casa
i tots els que esperen
que jo torne com abans.

I crec que he fet bé.
I crec que he fet bé.

Jo sé, jo sé, jo sé, jo sé, jo sé
que tornaré al carrer Blanc.

Però ara ací,
Però ara ací,
crec que també és ma casa,
i crec que puc dir-vos,
amb el cor obert,
a tots vosaltres: germans.

Germans.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

VI - En tu estime el món - (V)

Se em "Si un dia vols" há uma referência à fusão amor/combate, "ainda é forte a luta / e há tanto por fazer", há um título onde confluem num conjunto: "De nit a casa, junts". Esta canção, composta em 1969, sai pela primeira vez num disco de duas músicas, um simples, com "Veles e vents"; um disco importante datado de 1970 [cuja capa aqui reproduzimos].

Veles e vents / De nit a casa (SG, Discophon - 1970)


A 10 de Fevereiro de 1969, (faz hoje 40 anos), o regime do general Franco decreta um "estado de excepção", situação jurídica discutível que restringia ainda mais os escassos direitos limitados pela legislação. A arbitrariedade das detenções não tinha compensação, a polícia podia entrar em casa sem permissão judicial, o período de detenção alargava-se, etc. Segundo Alfaya i Sartorius em La memoria insumisa, apenas três dias após a proclamação do estado de excepção daquele ano que encerrava a década dos teoricamente "felizes" anos sessenta, havia 329 detidos, 96 pessoas em liberdade condicional, 56 à disposição dos tribunais militares e outras 62 à disposição dos tribunais civis. Um mês depois, o número de detidos chegava aos 715. Em "De nit a casa, junts", Raimon descreve um serão tenso de espera pelos temíveis agentes da Brigada Social. É uma canção necessariamente carregada de subentendidos e de cumplicidade com quem a ouve. Fica claro que Raimon e Annalisa aguardavam a polícia e faziam-no na sólida solidariedade do par.

Raimon faz esta ponte amor/luta na Integral. Depois desenvolverá este tema em "Quan creus que ja s'acaba", do mesmo ano de 1969, mas esta foca-se já mais no plano da luta. O assunto é a chegada da polícia. [Raimon alinhou-as: são as faixas 2 e 3 do 3º disco da Integral 2000, as mesmas versões que podemos escutar ali ao lado] Em "De nit a casa, junts"[23ª canção na caixa de música], diz:


I de nit a casa, junts /
E de noite em casa, juntos
Escoltàvem la música, /
Escutávamos a música,
De nit a casa, junts. /
De noite em casa, juntos.

I serenament esperàvem /
e serenamente esperàvamos
que d'un moment a l'altre /
que de um momento para o outro
l'ascensor es parés al nostre pis /
o elevador parasse no nosso piso.


E em "Quan creus que ja s'acaba" [22ª canção para ouvir], diz:


Potser una nit /
Talvez uma noite
l'ascensor que sempre puja /
O elevador que sempre sobe
es pararà al teu pis, /
pare no teu piso,
i tu i jo haurem d'obrir, /
e tu e eu teremos de abrir,
i jo i tu, impotents front a la nit /
e eu e tu, impotentes face à noite
- haurem d'obrir - /
- teremos de abrir -:
aquesta vella, odiada nit /
esta velha, odiada noite.



A noite volta a assumir um duplo sentido, o estrito da situação e o mais amplo da metáfora à ditadura. A reflexão "Quan creus que ja s'acaba, torna, / torna a començar" ("Quando pensavas que tinha acabado, / começa outra vez"), exposta nos versos iniciais, dá a entender que depois do rasgo de esperança de 1968, que Raimon expõe explicitamente em "18 de maig a la Villa" por duas vezes, e das mobilizações populares de 1969, o franquismo retoma a mão mais dura e o regime aguenta, uma vez mais, servindo-se da repressão. (...) Raimon teve sempre a pretensão clara de comunicar tão amplamente quanto o possível. Ele explica-o assim:


Fazer canções de amor é difícil, e para além disso, a mim sempre me deu vergonha publicá-las. O que posso dizer e que, ainda que possa ou não haver uma componente autobiográfica, não são temas pessoais. Posso dizer que mais que um casal me disse se ter apaixonado ouvindo canções de amor minhas, coisa que me parece magnífica; agrada-me.


Aquele ano mais que duro, o país ouvia estas canções, segundo o rânquingue de audiência: "Cenicienta", de Fórmula V; "Mi carro", de Manolo Escobar; "Himno a alegria", de Miguel Ríos (e do pobre Beethoven), e "El baúl de los recuerdos", de Karina. Salomé, depois de "S'en va anar", vencia o Festival da Eurovisão que se tinha celebrado no Teatro Real de Madrid com o tema "Vivo cantando"; mas vencia num estranho ex aequo de quatro insólitos primeiros prémios. Este subproduto, assinado por Aniano Alcalde e M. José de Ceratto, ilustra o que eram as canções de amor em voga:

Cuantas noches vagando
por mil caminos sin fin
Cuantas noches callando
cuanto te quise decir.
Una profunda esperanza
y un eco lejano me hablaba de ti.

Desde que llegaste
ya no vivo llorando,
vivo cantando
vivo soñando,
sólo quiero que me digas
qué está pasando,
que estoy temblando
de estar junto a ti.

Desde que llegaste
ya no vivo llorando,
vivo cantando,
vivo soñando,
pero me pregunto
que tu amor hasta cuándo
podré guardarlo
muy dentro de mí.


Quanto mais não fosse, a secreção incontinente de gerúndios é o retrato daqueles anos de tantos e tantos atestados policiais infestados deste tempo verbal. Salvador Espriu negou-se a assinar uma declaração à esquadra enquanto não lhe convertessem os gerúndios em conjugações menos funcionais.