terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

VI - En tu estime el món - (V)

Se em "Si un dia vols" há uma referência à fusão amor/combate, "ainda é forte a luta / e há tanto por fazer", há um título onde confluem num conjunto: "De nit a casa, junts". Esta canção, composta em 1969, sai pela primeira vez num disco de duas músicas, um simples, com "Veles e vents"; um disco importante datado de 1970 [cuja capa aqui reproduzimos].

Veles e vents / De nit a casa (SG, Discophon - 1970)


A 10 de Fevereiro de 1969, (faz hoje 40 anos), o regime do general Franco decreta um "estado de excepção", situação jurídica discutível que restringia ainda mais os escassos direitos limitados pela legislação. A arbitrariedade das detenções não tinha compensação, a polícia podia entrar em casa sem permissão judicial, o período de detenção alargava-se, etc. Segundo Alfaya i Sartorius em La memoria insumisa, apenas três dias após a proclamação do estado de excepção daquele ano que encerrava a década dos teoricamente "felizes" anos sessenta, havia 329 detidos, 96 pessoas em liberdade condicional, 56 à disposição dos tribunais militares e outras 62 à disposição dos tribunais civis. Um mês depois, o número de detidos chegava aos 715. Em "De nit a casa, junts", Raimon descreve um serão tenso de espera pelos temíveis agentes da Brigada Social. É uma canção necessariamente carregada de subentendidos e de cumplicidade com quem a ouve. Fica claro que Raimon e Annalisa aguardavam a polícia e faziam-no na sólida solidariedade do par.

Raimon faz esta ponte amor/luta na Integral. Depois desenvolverá este tema em "Quan creus que ja s'acaba", do mesmo ano de 1969, mas esta foca-se já mais no plano da luta. O assunto é a chegada da polícia. [Raimon alinhou-as: são as faixas 2 e 3 do 3º disco da Integral 2000, as mesmas versões que podemos escutar ali ao lado] Em "De nit a casa, junts"[23ª canção na caixa de música], diz:


I de nit a casa, junts /
E de noite em casa, juntos
Escoltàvem la música, /
Escutávamos a música,
De nit a casa, junts. /
De noite em casa, juntos.

I serenament esperàvem /
e serenamente esperàvamos
que d'un moment a l'altre /
que de um momento para o outro
l'ascensor es parés al nostre pis /
o elevador parasse no nosso piso.


E em "Quan creus que ja s'acaba" [22ª canção para ouvir], diz:


Potser una nit /
Talvez uma noite
l'ascensor que sempre puja /
O elevador que sempre sobe
es pararà al teu pis, /
pare no teu piso,
i tu i jo haurem d'obrir, /
e tu e eu teremos de abrir,
i jo i tu, impotents front a la nit /
e eu e tu, impotentes face à noite
- haurem d'obrir - /
- teremos de abrir -:
aquesta vella, odiada nit /
esta velha, odiada noite.



A noite volta a assumir um duplo sentido, o estrito da situação e o mais amplo da metáfora à ditadura. A reflexão "Quan creus que ja s'acaba, torna, / torna a començar" ("Quando pensavas que tinha acabado, / começa outra vez"), exposta nos versos iniciais, dá a entender que depois do rasgo de esperança de 1968, que Raimon expõe explicitamente em "18 de maig a la Villa" por duas vezes, e das mobilizações populares de 1969, o franquismo retoma a mão mais dura e o regime aguenta, uma vez mais, servindo-se da repressão. (...) Raimon teve sempre a pretensão clara de comunicar tão amplamente quanto o possível. Ele explica-o assim:


Fazer canções de amor é difícil, e para além disso, a mim sempre me deu vergonha publicá-las. O que posso dizer e que, ainda que possa ou não haver uma componente autobiográfica, não são temas pessoais. Posso dizer que mais que um casal me disse se ter apaixonado ouvindo canções de amor minhas, coisa que me parece magnífica; agrada-me.


Aquele ano mais que duro, o país ouvia estas canções, segundo o rânquingue de audiência: "Cenicienta", de Fórmula V; "Mi carro", de Manolo Escobar; "Himno a alegria", de Miguel Ríos (e do pobre Beethoven), e "El baúl de los recuerdos", de Karina. Salomé, depois de "S'en va anar", vencia o Festival da Eurovisão que se tinha celebrado no Teatro Real de Madrid com o tema "Vivo cantando"; mas vencia num estranho ex aequo de quatro insólitos primeiros prémios. Este subproduto, assinado por Aniano Alcalde e M. José de Ceratto, ilustra o que eram as canções de amor em voga:

Cuantas noches vagando
por mil caminos sin fin
Cuantas noches callando
cuanto te quise decir.
Una profunda esperanza
y un eco lejano me hablaba de ti.

Desde que llegaste
ya no vivo llorando,
vivo cantando
vivo soñando,
sólo quiero que me digas
qué está pasando,
que estoy temblando
de estar junto a ti.

Desde que llegaste
ya no vivo llorando,
vivo cantando,
vivo soñando,
pero me pregunto
que tu amor hasta cuándo
podré guardarlo
muy dentro de mí.


Quanto mais não fosse, a secreção incontinente de gerúndios é o retrato daqueles anos de tantos e tantos atestados policiais infestados deste tempo verbal. Salvador Espriu negou-se a assinar uma declaração à esquadra enquanto não lhe convertessem os gerúndios em conjugações menos funcionais.

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