segunda-feira, 17 de março de 2008

V - Caminant, amics (V)

A primeira canção personalizada para um amigo dedica-a a Andreu Alfaro. Alfaro é um dos escultores mais distinguidos que mais escola criaram no panorama espanhol; a sua obra está em espaços e museus de todo o lado e o seu Catalan power tornou-se um símbolo material da esquerda nacional. A amizade com Raimon é também antiga, enraizada e sólida. Alfaro, que vive em Valência, vai a casa de Raimon quando visita Barcelona. Um desenho de sua autoria, feito de um só traço como esboço de uma escultura, de Raimon à guitarra, servirá para ilustrar as suas primeiras convocatórias, legais e clandestinas, de impressão sofisticada e policopiada (...), que respondiam por "Raimon, la veu d´un poble", o título da peça escultórica.
No ano de 1978, Raimon escreve a canção para Alfaro, "Andreu, amic". A paisagem valenciana, imagens muito precisas produto de ter reflectido muito na arte da escultura, e o decassílabo inspirado en Ausiàs:

[A versão de "Andreu, amic" que podemos ouvir, é, não a original, gravada em 79, mas a de 1981. Foi incluída na primeira integral. É a 15ª canção na caixa de música.]

Andreu, amic, torsimany de metalls
d'on ha vingut la força i la vida
que retrobem en la teua escultura. /
Andreu, amigo, intérprete de metais
donde veio a força e a vida
que descobrimos na tua escultura.

Dels ponts del riu i de les pedres velles,
dels clars matins, de la llum dels baladres,
dels teus dos peus de passejades dòcils. /
Das pontes do rio e das pedras velhas,
das manhãs claras, da luz dos loendros,
dos teus dois pés de passadas dóceis.

Carrers estrets i espais poc metafísics,
tot l'entrellat d'una ciutat difícil,
indiferent i secularment puta. /
Ruas estreitas e espaços pouco metafísicos,
todo o emaranhado de uma cidade difícil,
indiferente e secularmente puta.

Del llom del gos la majestat domèstica,
l'angle feroç de vertical segura,
essencials virginitats remotes. /
Do lombo do cão a majestosidade doméstica,
o ângulo feroz de vertical segura,
essenciais virgindades remotas.

Andreu, amic, torsimany de metalls,
eròtic cast de fusta ben antiga,
arribes tu on la paraula es trenca. /
Andreu, amigo, intérprete de metais
erótico casto de tronco bem antigo,
chegas tu aonde a palavra se cala.

De ferro vell i de mesura insigne
-germans de crit- t'he fet aquest poema,
Andreu, amic, torsimany de metalls. /
De ferro velho e de medida insigne
-irmãos de grito- fiz-te este poema,
Andreu, amic, intérprete de metais.



Entre la nota i el so, Lp de 84
Capa com desenho de Andreu Alfaro

domingo, 16 de março de 2008

V - Caminant, amics (IV)

Raimon valoriza muito a amizade e cultiva-a, como o demonstra o facto de que no seu círculo próximo surjam ainda companheiros de brincadeiras da infância e malandrices da juventude, como Joan i Toerregrossa; outra coisa é que quando a vida se desenvolve as mudanças vêm e determinadas proximidades tornam-se longínquas por diversas razões, que podem ir de simples mudanças de residência até às mais vis dissidências. O peso que outorga Raimon à amizade fica patente em temas como a "Cançon de la mare", na qual os amigos figuram entre os bens mais estimados quando Raimon, para levar avante o seu trabalho, se vê obrigado a partir para Barcelona, numa época en que quatrocentos quilómetros eram uma distância substancial. Depois, en "Molt lluny", onde evoca as primeiras conversas importantes com os companheiros de Xátiva. No memorável recital dos trinta anos de "Al vent", depois desta canção leitmotiv, a primeira que Raimon canta é "Molt lluny". São de "Molt lluny" as palavras que encabeçam este capítulo:

[É com esta canção que ficamos hoje. Em escuta, a versão que gravou pela primeira vez. Está no disco "A Víctor Jara", de 74. É a 14ª canção na caixa de música. Traduzi-a apenas no fim do texto original, sem intercalar idiomas para uma mais fácil leitura e audição.]

A Víctor Jara, Lp Movieplay, 1974


Molt lluny,
en les butxaques d'uns pantalons
vells
que ma mare guardava
-ma mare ho guarda tot-,
he trobat
les nits que ens passàvem
caminant, amics,
pels carrers de Xàtiva.
Parlavem de tot
i del bé i del mal.
Amb poques coses clares:
la incertesa del futur,
l'avidesa d'uns infants.
Les caminades nits d'estiu
les tinc avui al davant.
Amunt i avall...
/
Muito longe,
nos bolsos dumas calças velhas
que a minha mãe guardava
- a minha mãe guarda tudo -
encontrei as noites que passávamos
a caminhar, amigos,
pelas ruas de Xátiva.
Falávamos de tudo,
e do bem e do mal.
Com poucas coisas claras:
a incerteza do futuro,
a avidez de crianças.
As caminhadas noites de Verão
tenho-as hoje pela frente.
Acima e abaixo...

quinta-feira, 6 de março de 2008

V - Caminant, amics (III)

Inici de cântic é um poema bem acabado no qual o autor concentra, na plenitude literária formal, dois dos seus eixos temáticos: a salvação de uma língua que se pensava que não sobreviveria à agressão franquista, e a fé no povo, que era, no seu entender, a forma plural da espécie Homem, medida tangível de todas as coisas. O poeta ficou tão contente pela versão musicada de Inici de Cântic, de facto uma canção poderosa e emblemática, que acabou por alterar a dedicatória: "A Raimon, com o meu agradecido aplauso".

Depois do êxito, Espriu tentou Raimon para que musicasse poemas que ele queria, especialmente os do seu último ciclo, Per a la bona gent, coisa que nem sempre Raimon fez, porque casar letra e música apresenta muitas vezes mais limitações que o casamento canónico. A segunda parte de Per a la bona gent, intitulada Intencions, leva este repto: "Para que Raimon cante intencionalmente, talvez um dia, todos estes versos". Até agora, musicou dois dos dez.

Tema definitivamente espinhoso para ser cantado, por causa das barreiras entre Catalão e Caló, a língua mestiça dos ciganos que Espriu tanto estimava, é Venda i passió de la Melera, que leu para Raimon com entusiasmo. Raimon não o musicou, mas fê-lo com a longa salmodia He Mirat Aquesta Terra, poema XXIV do Llibre de la Sinera, que se juntou à lista dos preferidos do escritor, segundo fez constar no texto incluído na primeira versão da obra completa de Raimon, no ano de 1981. Na Nova Integral. Edició 2000, Raimon conta com vinte e uma canções com textos de Salvador Espriu. O poeta dizia assim do cantor em meados dos anos setenta:

Raimon é um homem que estimo profundamente e por quem sinto uma grande admiração. Penso que no complexo mundo da Cançó é um caso absolutamente único e excepcional. Raimon criou uma obra pessoal muito considerável e dedicou muita atenção à minha poesia, porque, como ele disse, a recolha da minha obra completa é o seu livro de cabeceira. Leu-me tão bem, e leu-me sob as diversas matizes da minha poesia, que, no meu entender, as suas melhores canções, diria mesmo o complexo, não a letra ou a música, foram criadas através dos textos de Ausiàs March, que é o poeta número um da literatura catalã, e através das minhas canções, sobretudo o elepê que dedicou às Cançons de la Roda del Temps, que é simplesmente sensacional.

Raimon contactaria com Espriu até ao fim. Ficou-lhes um projecto bonito por fazer. Em Dezembro de 1984, apenas um par de meses antes da morte do poeta, falavam de um espectáculo Espriu-Raimon, que consistiria em interpretar todas as canções conjuntamente, com uma orquestra sólida e os arranjos de Antoni Ros Marbà, se o maestro pudesse, dirigida por ele mesmo, e uns textos introdutórios a cada uma das canções que Espriu escreveria com esta finalidade, coisa com a qual, Raimon, para lá de cantar, faria de actor, recitando os monólogos. Não houve tempo, a temida Dama à qual Espriu tinha dedicado tanta poesia, precipitou a sua partida.

terça-feira, 4 de março de 2008

V - Caminant, amics (II)

Raimon conheceu Salvador Espriu pelos fins do Verão de 1963. Espriu era um poeta muito reconhecido, isso que se dizia, marimbando-se, um figurão e, como a Raimon lhe fazia espécie abordá-lo directamente, pediu a Joan Fuster que lhe fizesse uma carta de apresentação e assim, uma vez lida, Raimon ligar-lhe-ia para se encontrarem. Foi assim e quando Raimon lhe telefonou deparou-se com uma surpresa: "Admiro-o profundamente", respondeu a nasalada voz do poeta. Raimon apenas tinha gravad um pequeno disco e ainda não o tinha lançado na popularidade o Festival de la Cançó del Mediterrani, mas Espriu, homem de pouca vida na rua mas - podemos dizê-lo - com as antenas viradas para todos os lados, já tinha ouvido aquele Ep e intuia que ali havia material de qualidade.

Espriu tratava de temas que eu compartia, mas ele expressava-os muito melhor do que eu alguma vez pudera fazer - explica Raimon -. Ele era mais conhecido pela poesia social, pela La Pell de Brau, mas a mim o que me interessava era a poesia mais íntima, que alguns consideram a mais fechada ou hermética. Era o lirismo contido de El Caminant i el Mur, ao qual pertencem as Cançons de la roda del temps, que são as primeiras que musiquei. Espriu era um grande poeta.

Ficámos em casa de Espriu, que então ficava no magnífico edifício de Domènech i Montaner, hoje Hotel Casa Fuster, onde o Passeig de Gràcia passa a ser Gran de Gràcia. Falámos desde as oito da noite até às 4 da manhã. Espriu, a austeridade monacal em pessoa, não jantava; Raimon tampouco o fez, mas aceitou um bom conhaque. Temas de conversa, sobretudo poesia, gostos partilhados, como agora [T.S.] Eliot, [Ezra] Pound, [Luis] Cernuda, [Nicolás] Guillén.

Quando o clima já estava criado e foi preciso, Raimon cantou-lhe "Cançó del Capvespre", único poema que tinha musicado até àquele momento. Raimon sabia que La Pell de Brau se tinha tornado num best seller, em género minoritário e língua minoritária, um mérito enorme, mas achava que não era o melhor da obra de Espriu. Mas isso seria aprofundado e partiria para as Cançons de la roda del temps, que fazem parte do livro El Caminant i el Mur, que é lírica pura e dura, e que Raimon interpretaria depois, já com o nihil obstat do autor. Espriu ficou muito contente pela opção pelo mais difícil e aparentemente menos comercial... Tão pouco comercial que, apesar de Raimon ter conseguido um desenho de Joan Miró para a capa [do disco], Edigsa adiou a edição de todo o ciclo para o concentrar num Lp, porque pensavam que nunca venderia. Pois, enganaram-se: as pessoas acabam sempre por se surpreender com as previsões que fazem.

Espriu ficou encantado com as Cançons de la roda del temps e agradaram-lhe tanto que pediu a Raimon que lhe escrevesse um preâmbulo na edição francesa de La Pell de Brau, um desafio, e até que pusesse música a um poema que tinha escrito em 1964 em homenagem a Joan Salvat-Papasseit, "Inici de Càntic", na comemoração do quadragésimo aniversário da sua morte. Espriu, que era muito polido, pôs-lhe uma dedicatória: "Para que Raimon o cante". Um ano depois, Raimon cantava-o, com o seu arranque mais jondo: um "Ai" que junta dois compassos, que é uma das configurações harmónicas mais complexas de toda a obra raimoniana, sete bemóis na armadura, a estranha tonalidade de Dó bemol maior..., que convida a ser interpretada com um transporte subtil para fazer desaparecer a desafinação das mudanças... mas esta é uma guerra para criptógrafos à qual o leitor não qualquer obrigação de ir - como a nenhuma, obviamente.

Edição francesa de Cançons de la Roda del Temps (CBS, 1967)

[A canção para hoje é então a magnífica Inici de Càntic, originalmente incluída no disco com a capa de Miró (1966), aqui reproduzida. A versão que podemos ouvir, a 13ª canção na caixa de música, é a regravação que fez para a primeira integral, de 1981. Se bem que esta não tenha a introdução supracitada, escolhi-a porque penso que os arranjos orquestrais transmitem melhor a tensão e a intenção do poema. Uma última nota para referir que me abstenho de o traduzir. Pelo menos por agora].

Ara digueu: "La ginesta floreix,
arreu als camps hi ha vermell de roselles.
Amb nova falç comencem a segar
el blat madur i amb ell, les males herbes."
Ah, joves llavis desclosos després
de la foscor, si sabíeu com l'alba
ens ha trigat, com és llarg d'esperar
un alçament de llum en la tenebra!
Però hem viscut per salvar-vos els mots,
per retornar-vos el nom de cada cosa,
perquè seguíssiu el recte camí
d'accés al ple domini de la terra.
Vàrem mirar ben al lluny del desert,
davallàvem al fons del nostre somni.
Cisternes seques esdevenen cims
pujats per esglaons de lentes hores.
Ara digueu: "Nosaltes escoltem
les veus del vent per l'alta mar d'espigues".
Ara digueu: "
Ens mantindrem fidels
per sempre més al servei d'aquest poble
".

domingo, 2 de março de 2008

V - Caminant, amics (I)

Manuel Vázquez Montalbán morreu em Bangkok, cenário de um dos seus romances, no dia 18 de Outubro de 2003. Vázquez Montalbán era um dos grandes amigos de Raimon. Vázquez e Anna Sallés, a sua esposa, historiadora, e Raimon e Annalisa viam-se com frequência, tinham jantares juntos, celabrações familiares - aniversários, o doutoramento de Anna, os prémios literários de Manolo... -, viajavam. Sobretudo, falavam, ouviam-se, inquietavam-se e compartilhavam muitas coisas; compartir, este verbo faz com que a própria vida se encare em comum. Raimon e Vázquez Montalbán compartilhavam ideias, maneiras de ver a vida, o gosto pela literatura e a gastronomia. E pela música popular, que Vázquez conhecia ao ponto de ter escrito alguns livros sobre o tema. Bem cedo se interessaria pelo fenómeno do aggiornamento da nossa música popular, e dissertá-lo-ia numa Antologia de la Nova Cançó Catalana. Depois tornou-se patente a sua afeição pela copla e outras variantes da sua língua materna ouvidas na infância e, de facto, escreve o romance com o qual o detective Pepe Carvalho salta para a fama a partir de um bolero cantado por Concha Piquer, "Tatuaje". Tudo isto aproxima-o de Serrat, a quem biografa.
Raimon canta na memória que lhe foi feita na Universidade de Barcelona, em 21 de Outubro de 2003. A Raimon, sempre irónico e simpático, muda-se-lhe a face quando lembra os seus amigos já falecidos, ausências irreversíveis, um vazio que nunca será preenchido. Vázquez Montalbán (1939-2003) foi o último; antes, Joan Fuster (1922-1992), Enric Gispert (1925-1990), Salvador Espriu (1913-1985).

Falou-se muito de Joan Fuster, porque estávamos nos inícios de Raimon e, naqueles tempos, o escritor de Sueca foi uma personagem-chave na sua passagem da História à Canção. Fuster era um multifacetado da cultura, um intelectual completo, um homem do Renascimento, lúcido e lúdico. Desde os seus artigos até à Cátedra de Literatura que ocupou os últimos anos da sua vida, passando pela sua diversa bibliografia, Fuster foi um dos cérebros mais influentes do nosso século XX. Sobre Raimon escreveu bastante, a começar pelo livro que já mencionámos, uma primeira edição com capa, e também fotos no interior, de Oriol Maspons, o número 16 da colecção "Biografies Populars", da Editora Alcides: Raimon era o quarto músico, antecedido por Josep-Anselm Clavé, Victòria dels Àngels e Raquel Meller.
Esta breve lista dá-nos a ideia da popularidade atingida por Raimon, comparável ao fundador dos coros com maior implantação no país, à soprano catalã de voz mais esquisita, à "cupletista" [de cuplet) de maior renome e caché, que tornou tão famosa "La Violetera" que até Charlie Chaplin a lembrou e tem uma estátua no Paral.lel [estação do metro de Barcelona]. Com uma diferença: Clavé e Meller eram história, Victòria dels Àngels tinha acabado de triunfar na inexpugnável fortaleza wagneriana de Beirute, na maturidade vocal, e Raimon era um moço de vinte e quatro anos, com apenas uma dúzia de canções como repertório.
Fuster também escreveu um dos textos de apresentação de Raimon. Totes les Cançons, incluído na reedição do livro de Fuster feita pelas Edicions de la Magrana, no ano de 1988. No fim desse comentário na primeira recolha da sua obra, em discos de vinil, Raimon escreve no diário Les Hores Guanyades este entranhável parágrafo sobre Fuster, datado de 20 de Abril de 1981, no qual entrevemos qual é o seu maior conceito de amizade:

Jantámos com Fuster, em Sueca. Diz-nos que já leva vinte folhas para a apresentação dos vinte anos de Raimon. Assegura-nos que praticamente deixou de escrever artigos para se concentrar na escrita da apresentação. Que dias maravilhosos! A Annalisa e eu sentimo-nos lisonjeados. Se os amigos te estimam e to demonstram, já podem vir os inimigos, que sejam bem-vindos.

De Gispert também se falou. Esperou-o à sua chegada a Barcelona e foi a sombra criativa em todas as suas gravações; Raimon deixou o seu nome nos agradecimentos em tantos e tantos discos, em alguns dos quais interveio muito nos arranjos, como agora na emblemtática "Veles i Vents". Gispert sabia muito de música, mas de música sabiam poucos, para dizê-lo a jogar com as palavras. Falava baixo e apenas quando se lhe pedia. Além dos estudos musicais e de dirigir a grupo Ars Musicae, tinha cursado Direito, mas vivia de uma loja onde torrava café e vendia frutas secas, no bairro da Ribera, que por fim o tornaria mestre da capela de Santa Maria del Mar. Gispert seria director do coro, investigador de música antiga, produtor discográfico e crítico, um grande crítico, o melhor da sua geração, em que competia com inlustres compositores.
Tinha estudado muito o Raimon músico, facto do qual deixou provas no texto que também acompanhava a caixa Raimon. Totes les Cançons, e um tratado sobre o tema foi a última coisa que deixou por fazer. Eram dias de estudo, um seminário sobre a obra de Raimon, organizadas pelo CIC de Terrassa, no âmbito dos cinquenta anos do cantor, na primeira semana de Dezembro de 1990. Gispert, já muito doente, morreria no dia 27 desse mesmo mês.