sábado, 9 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XVI)

"Al vent" representa uma peça importante na cultura catalã, e por arrastamento noutras culturas peninsulares que se reclamavam da Nova Canção, em geral, e de Raimon, em particular, para dar seguimento a processos creativos neste âmbito. O trigésimo aniversário do lançamento do disco "Al vent" daria a medida certa do Raimon que começou a construir-se a partir daquele tema.

O dia de San Jordi de 1993, na Barcelona fashion pós-olímpica, Raimon continuava a ser muito mais que actualidade: à sua volta organizava-se um dos acontecimentos culturais de maior magnitude em torno da música. No Palau Sant Jordi, sede símbolo dos Jogos, criado por Arata Isozaki, Raimon juntava 18 mil pessoas na plateia e a mais brilhante pléiade de cantores e músicos de qualidade jamais vista num palco. Daniel Viglietti, Joan Manuel Serrat, Paco Ibañez, Luís Cília, Ovidi Montllor, Pete Seeger, Quico Pi de la Serra, Mikel Laboa, Warabiza, Michel Portal, Josep Pons, Antoni Ros Marbà, o Coro Sant Jordi, dirigido por Oriol Martorell, e a banda La Lira Ampostina, que recuperaria o Raimon flautista.

Como documentos vivos deste mega-recital ficaram um vídeo e duas canções do concerto, que estão incluídos no décimo Cd da caixa intitulada Nova Integral. Edició 2000. Os dois temas são "Oh, desig de cançons", que se estreava, e "Com un puny".

O grito da Vespa tinha conseguido o que nenhum outro cantor havia alcançado no mundo mediático. Transmissão em directo pela TV3 na Catalunha e em diferido pela TVE para toda a Espanha. Notícia em todos os diários de Barcelona e, o que é mais significativo, comentários editoriais; estes espaços estão reservados quase exclusivamente para a política, temas internacionais, economia e sociedade. Um cantor merecedor de editoriais no La Vanguardia e no El País foi, efectivamente, um facto jornalístico insólito.

Mas para sintetizar a trajectória de "Al vent" - e a sua circunstância - que se percorre neste capítulo, a peça idónea é o artigo que escreveu no El País (25 de Abril de 1993) Manuel Vázquez Montalbán, amigo íntimo de Raimon. Com ele encerramos este capítulo e começaremos o próximo:

Por um montento consegui sair de mim, da minha presença no Palau Sant Jordi, e vi-me com Salvador Clotas, Martín Capdevilla e Ferran Fullà, os quatro, na escula da prisão de Lérida em 1963, à volta de um pequeno disco em cuja capa aparecia um moço da nossa idade com uma guitarra debaixo do braço, o anúncio de canções como "Al vent" e uma apresentação a cargo de Joan Fuster. Nós, os valencianos, tínhamos por companhia na cela, ao pé de Sweezy, Baran, A estrutura da lírica moderna, Álgebra moderna; cada louco, cada estudante com o seu tema. A voz de Raimon soou presa naquela escola-prisão, mas começou a elevar-se e alcançou para além dos barrotes o voo das andorinhas e a línha imaginária das terras do Segre. Ao acabar "Al vent" percebemos que tínhamos ouvido algo profundamente novo e as vibrações da poderosa voz do valencianismo prometiam partir os vidros da estação e os caixilhos de uma cultura ameaçada pelos inimigos exteriores e pelos amigos que às vezes a asfixiavam por excesso de protecção.

Contracapa de Al vent (1963),
com texto de apresentação de Joan Fuster

Tantas coisas começaram com "Al vent", e anteontem [dia 23 de Abril, dia do concerto] a canção de Raimon mostrou a sua vocação para a eternidade e fez-se novamente a voz do cantor, mas também se mostrou apta a japonesismos e para ser versionada pela a banda [filarmónica] valenciana. O jacobeo de "Al vent" tinha convocado peregrinos de todas as terras da canção e de todas as terras de Espanha. Houve quem trouxesse os seus filhos para que compreendessem de que precárias fontes se alimentava a esperança naqueles tempos em que estar "ao vento" ou "dizer não" te garantia um carimbo, obviamente secreto, de subversivo; mas o surpreendente do recital de Raimon e dos alegres moços companheiros da sua noite liga-se a uma sensação colectiva de que as palavras haverão de se libertar da insustentável leveza do saber e apostar pela descrição da desordem. A nostalgia que se escondeu levemente nos gaseados tectos do palácio catalão-japonês e a comunicação que se estabeleceu na sala capturava por sua vez a consciência, constatação crítica por todas as tentações que tentaram falsificar tantas origens para esconder o obstáculo das identidades.
Ali estava Raimon, no palco, a oxigenar tudo com a sua voz de furacão e o seu silêncio educado por meio de Espriu e Mompou e Serrat a recuperar canções de madrugada fugitivo de ida e volta do Poble Sec [lugar onde nasceu Serrat], fugitivos de ida e volta como todos os que tivemos pátrias de infâncias pequenas e erosionadas. Ali estava Quico a demonstar que tampouco o tempo passou para o "homem da rua", que continua com o seu traje cinzento à espera da ressurreição das almas e das carnes. E Paco, Paco Ibañez a chamar à ordem os políticos e a deixar os "cavalos a galopar" para que enterrassem no mar insuficiências e cansaços democráticos. E Viglietti, que nos lembrou o seu terceiro mundo, o nosso quarto mundo; ou Seeger, que nos ajudou a recuperar a memória de "Ay Manuela!" ou "Ay Carmela!"..., que eram a mesma derrotada, confiante em que as canções contassem a verdade da Vida e da História. Montllor: porque não canta Montllor se canta tão bem como sempre e melhor que antes desse sempre? E Cília, tão necessária a sua voz? Laboa, o musicador essencial.

Quando voltei da prisão de Lérida ao Palau Sant Jordi, não levava em mim o consolo da nostalgia, senão a impressão de que o acto a que assistimos não tinha nada que ver com uma reunião de ex-combatentes ou de ex-presos. Em muitos momentos foi uma reunião intrinsecamente subversiva, ainda que talvez a palavra "subversão" fosse um caligrama da grande reprodução de Miró, que, na retaguarda [um mural fazia de fundo] e à sua sublimada forma, sempre pontou a favor das coisas necessárias. Exacto. Foi um acto necessário de balanço e de "hasta aquí hemos llegado!".


[Encerramos aqui o IV capítulo com o fim deste concerto. A canção é mais que obviamente "Al vent". E que pena não poder dar-vos também a ouvir a original, a de 1963...]


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XV)

Em "Cançó de les mans", Raimon insiste na crítica da pobreza a que são maioritariamente condenados os assalariados. "Mans tan dures / dels que passen fam". E em defesa do direito à vida num país em que se aplicam ou aplicaram sentenças de morte ou se mata com a rapidez cruel da tortura e com a cruel lentidão da prisão: "Mans dels que maten, brutes; / mans fines que manen matar". Passara menos de um ano do fusilamento do dirigente comunista Julián Grimau; eram cinco e meia da manhã de 20 de Abril de 1963, e ainda com as cicatrizes por todo o corpo, consequência de terem-no lançado por uma janela para simular um suicídio que camuflasse as terríveis sessões de tormento.


[A canção de hoje, Cançó de les mans, a décima segunda na caixa de música, é uma das minhas preferidas. A versão que podemos ouvir é de 1968, incluída no disco simples cuja capa reproduzimos.]

De l'home mire
sempre les mans. /
Do homem olho
sempre as mãos.

Mans de xiquet, ben netes,
mans de xiquet que es faran grans.
Mans que en la nit busquen
allò que no troben mai. /
Mãos de miúdo, bem limpas,
Mãos de miúdo que se tornarão grandes.
Mãos que na noite procuram
o que nunca encontrarão.


Mans dels que maten, brutes;
mans fines que manen matar.
Mans tremoloses, eixutes,
mans tremoloses,
mans dels amants. /
Mãos dos que matam, sujas;
mãos sensíveis dos que mandam matar.
Mãos trémulas, secas,
mãos trémulas,
mãos dos amantes.


De l'home mire
sempre les mans. /
Do homem olho
sempre as mãos.

Mans tan dures
dels que passen fam.
Mans tan pures
de quan érem infants. /
Mãos tão duras
dos que passam fome.
Mãos tão puras
de quando éramos crianças.

De l'home mire
sempre les mans. /
Do homem olho
sempre as mãos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XIV)

À crise da língua, da mesma forma, soma-se-lhe um elemento directamente político, como se notou no caso Serrat, o compromisso da esquerda, que é posterior a 1970. Emerge com certeza pelo que viu e pelas consequências de dar para trás ao regime, que o levam a Paris, onde conhece o dirigente socialista Francesc Vila-Abadal, um dos redactores dos quatro pontos programáticos da Assemblea de Catalunya, que estava exilado. O factor político reside nesta dualidade entre a reivindicação nacional e a social que é própria do catalanismo de esquerda ou da esquerda catalanista, mas não do catalanismo conservador, que era hegemónico na Edigsa, teledirigida por Espar. Assim, Raimon sai da Edigsa.

A correspondência entre Joan Fuster e Joaquim Maluquer descortina com propriedade a face oculta do caso. Numa carta assinada por Fuster a 13 de Setembro de 1967, pouco antes da ruptura de Raimon com a Edigsa, que também foi subscrita por Pi de la Serra, ele diz que o prémio que a editora dava iria, no ano de 1966, para Raimon pelo disco ao vivo no Olympia de Paris. Era mais que evidente, pelo seu valor artístico e pelo enorme impacto que teve na Nova Cançó. Mas não lho dariam porque era um disco "político" e não queriam ter problemas com o Ministério de Información y Turismo. Raimon, diz Fuster, chateou-se e com razão: "As ideias de Raimon sobre a burguesia não são, propriamente, aduladoras". Mais tarde, volta a criticar Edigsa - lemos que Maurici Serrahima também lhe pôs nódoas. Fá-lo a partir de uma divertida referência a Jordi Nadal, que tinha organizado a viagem académica de Raimon a Aix-de-Provence para melhorar os seus conhecimentos:

Jordi Nadal - diz Fuster - o que quer é "convertir" o moço de tenor em erudito. Agrada-me. Por outro lado, os burros da editora do disco estão a deixar passar a oportunidade de vender exemplares. E de que maneira!

A opção de cantar em Catalão é política, mas também de mercado e, portanto, tem consequências económicas. O esforço de compor é igual em qualquer língua, mas o mercado potencial básico do Catalão é exponencialmente menor que o Castelhano. Aqui há um compromisso político sério, portanto, e os que tentam pôr os catalães a cantar em Castelhano sabem que todos se recusarão. Dinheiro e popularidade são iscos saborosos.


Raimon grava, como se disse, o seu segundo Ep no mesmo ano de 63, como resposta à grande procura e às expectativas geradas pela sua entrada de cavalo siciliano no mundo que era então mais espectáculo que cultura. Grava "Se'n va anar" e a meio-inócua, meio-ingénua "Disset Anys", dando cobertura ou subterfúgio à "Cançó del Capvespre", que traz do beco o melhor poeta catalão comprometido com o país e a liberdade, e a "Diguem no". Esta canção terá sérias dificuldades para passar a censura e apenas chegará a disco e aos palcos com uma mudança de título, "Ahir" [Ontem], que não quer dizer absolutamente nada, e um par de substanciais alterações na letra. Reproduzimos a original e as mudanças a negrito:

Ara que som junts
diré el que tu i jo sabem
i que sovint oblidem:

Hem vist la por
ser llei per a tots.
Hem vist la sang
-que sols fa sang-
ser llei del món.

No,
jo dic no,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món.

Hem vist la fam
ser pa
dels treballadors (per a molts).
Hem vist tancats (com han fet)
a la presó (callar a molts)
homes plens de raó.

No,
jo dic no,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món.
No,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món



Em 1964 sai o seu terceiro Ep, com "D'un temps, d'un país", "Cançó de les mans", "Perduts" e "Tot sol", e o primeiro Lp, uma antologia comentada pelo próprio Espriu e por José Luis López Aranguren, professor de Ética na Universidade Complutense de Madrid, da qual, anos depois, seria expulso por se manifestar contra o regime. "D'un temps, d'un país" e "Cançó de les mans" apostam forte. O professor Aranguren, intelectual de peso, escreve um texto belíssimo na contracapa daquele Lp. Onde diz o seguinte:

Eu diria que Raimon contém em si uma força capaz de mobilizar as adormecidas energias de uma grande parte da nossa juventude, precisamente porque pertence por inteiro a ela, e porque, podendo "comunicar" com ela, é exigente, sabe dizer "não" às injustiças, conhecer e rejeitar as mãos que matam e as que mandam matar; e porque procura no escuro e a gritar, moço perdido na noite da cidade moderna, uma nova salvação para todos. Em suma, porque desde o fundo de si próprio se projecta para onde se dirige o Homem.

Na primeira canção, Raimon contesta a doutrina de Primo de Rivera da "dialéctica de los puños y las pistolas", com o inequívoco "no creguem en les pistoles: / per a la vida s'ha fet l'home / i no per a la mort s'ha fet". "Não acreditamos nas armas", verdadeira exclamação em defesa do direito à vida, expressa-se em forma de grito, de ordem pura e dura num verso, só e livre. Na mesma canção desaprova "la misèria necessària, diuen / de tanta gent" e proclama que "no anirem al darrere / d'antics tambors", os mitos da história militar de Espanha que a ditadura propagandeava: Viriato, o Cid Campeador, o Gran Capitán, o general Moscardó e, claro, o generalísimo Franco.

["D'un temps, d'un país" é a canção nº 11 de Raimon na caixa de música. Canção emblemática, verdadeiro hino, que foi gravada em 64, no seu terceiro Ep. Mais tarde, já saído da Edigsa, voltou a gravá-la. Essa versão, de 1968, é a canção de hoje]


D'un temps que serà el nostre,
d'un país que mai no hem fet,
cante les esperances
i plore la poca fe. /
De um tempo que será o nosso
De um país que nunca fizemos
Canto as esperanças
E lamento a pouca fé.

No creguem en les pistoles:
per a la vida s'ha fet l'home
i no per a la mort s'ha fet. /
Não acreditamos nas pistolas:
Para a vida se fez o Homem
não se fez para a morte.


No creguem en la misèria,
la misèria necessària, diuen,
de tanta gent. /
Não acreditamos na miséria,
a miséria necessária, dizem,
de tanta gente.


D'un temps que ja és un poc nostre,
d'un país que ja anem fent,
cante les esperances
i plore la poca fe. /
De um tempo que já é um pouco nosso,
de um país que já estamos a construir
canto as esperanças
e lamento a pouca fé.


Lluny som de records inútils
i de velles passions,
no anirem al darrera
d'antics tambors. /
Longe estamos de memórias inúteis
e de paixões antigas,
Não iremos atrás
de antigos tambores.

D'un temps que ja és un poc nostre,
d'un país que ja anem fent,
cante les esperances
i plore la poca fe.

D'un temps que ja és un poc nostre,
d'un país que ja anem fent.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XIII)

Raimon, com um disco triunfante no bolso e o primeiro prémio do festival de música pop mais importante do Estado até então, está como se costuma dizer lançado na fama. A Televisão Espanhola confida-o a participar no seu programa de maior audiência, Gran Parada, que se emite aos sábados à noite. Nele, canta "Al vent" e "Diguem no"... E não volta ao pequeno ecrã - a maior, contudo, na difusão dos artistas -, até depois da morte de Franco. Seria num programa com guião de Fuster e realização de Mercè Vilaret, emitido em Abril de 77, precisamente dois meses antes das primeiras eleições democráticas.

Porém, vetá-lo na televisão não viria imediatamente. Primeiro tentariam comprá-lo para o integrarem no sistema. Era o ano de 63 e um método que falhava poucas vezes, já que fama, dinheiro e polícias a protegê-lo e não a persegui-lo, implicavam um boa soma de exploração. O primeiro isco era cantar em Castelhano em nome de uma evidente ampliação do mercado. Raimon recusa. O monolinguísmo abraça uma parte ideológica importante de todo o grupo, que começa já a ser conhecido como a Nova Cançó. Cinco anos depois, o caso de Serrat e o Festival da Eurovisão assentava nesta linha. Serrat chega aos palco sem a formação intelectual e política de Raimon, e, além disso, é filho de mãe falante de Castelhano, de Belchite; tudo unto faz com que aceite ao princípio representar Espanha no Festival da Canção da Eurovisão do ano de 68 cantando um tema em Castelhano, um tema nem mais nem menos que do Dúo Dinámico, formado por dois consentidos pelo franquismo. O tema, literariamente, chama-se apenas "La, la, la". Não está nem à altura da canção comercial com algumas pretensões estéticas, como hoje a "Ponte de rodillas" que, inspirando-se no gospel, Teddy Bautista e Los Canarios tinham levado ao topo das listas de vendas daquele ano. Por fim, Serrat sente-se mal com a maquinação e diz que em Catalão ou nada.

Nesta espinhosa situação, da mesma forma, com a perspectiva histórica, deve dizer-se que o caso de Serrat tem um fundo que está para lá da questão de língua. Serrat apresenta-se, naqueles começos, mais como um cantor comercial de qualidade que como um cantor comprometido civicamente. O seu representante, Lasso de la Vega, é-o também do Dúo Dinámico - não por acaso autores de "La, la, la" - e a sua ideia principal é vender discos; a promoção que se faz de Serrat com "La, la, la" é impressionante. Enquanto Raimon, em 1968, está a cantar para trabalhadores e estudantes metidos em organizações clandestinas e é proibido, aceitar representar a Espanha franquista num festival internacional, transmitido pela televisão, supera o factor linguístico.

No começo do multicultural século XXI pode ser difícil entender que um compromisso cívico se baseasse na fidelidade a um idioma e que essa fidelidade implicasse ter de prescindir de outras. Mas a ucronia [desenvolvimento imaginário de um facto histórico como se ele tivesse sido real] ou o "pressentismo" estão rendidos à história. Quando a Canção Catalã irrompe, os sectores mais combativos interpretavam que compaginar Catalão e Castelhano era fazer uma concessão ao inimigo, quando não mesmo traição. A luta pela conservação de um idioma que queriam liquidar, a "maltractada llengua" segundo a adjectivação de Raimon, exigia para muitos um compromisso sem meias-tintas. Espriu tinha bem presente que a milenária língua catalã estava em perigo de extinção, que falava de "salvar as palavras" como valiosos tesouros, como seres de uma espécie em vias de extinção. Mas, felizmente, o Catalão sobreviveu e, anos depois, Núria feliu, a primeira cantora a dar um passo pelo bilingúismo, seria uma militante muito especial de um partido tão catalanista como Convergència Democràtica, sem que a história lhe passasse factura. Mas na altura, a Nova Cançó entra em crise e a unidade abre brechas.

Raimon interiorizou muito a questão da língua. Quando pensa em voz alta, gira em torno deste discurso:

A mim propuseram-me, obviamente, cantar em Castelhano, e até em Inglês! Mas eu sei que as possibilidades expressivas maiores tenho-as na minha língua. As minhas imagens penso-as na minha língua. O facto de que seja minoritária não quer dizer que não tenha de existir. Eu sou a favor da biodiversidade, mas também linguística, não só relativa à flora e à fauna, mas também no aspecto humano. No mundo da globalização, há o perigo que desapareça tudo o que é minoritário, tudo aquilo que não é padronizável. A diversidade ainda não está garantida.
Quando alguém canta em Castelhano, em Francês ou em Inglês, ninguém faz preguntas, é normal que cante na sua língua. Porque é que nós temos de dar tantas explicações? Pois bem, eu tenho assumido tudo isso e não só pelo compromisso cívico, mas também pelo estético, porque eu sei que é na minha língua que posso fazer melhor o meu trabalho.

[Já que está disponível, aqui vai a "La, la, la", cantada por Serrat. O vídeo, percebe-se, é da versão em Castelhano, mas o som é da versão em Catalão...]


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XII)

Mas "Paz" não ganharia o Festival de la Cançó del Mediterrani. Ganha um tema em Catalão, "Se'n va anar", que se inscreve, mas com dignidade, nos padrões comerciais, com letra de Josep Maria Andreu e música de Lleó Borrell. "Se'n va anar" pode passar como uma grande canção de amor, mas também como uma saudação a "L'emigrant", de Vives i Verdaguer, ou, pelos mais dotados à hermenêutica, como uma metáfora do exílio; eram os tempos dos cinefóruns, sessões em que em torno de um filme serviam para que toda a gente desse a sua opinião, sempre contra a ditadura. Sem Raimon, toda esta componente teria estado ausente; com Salomé ou outra cantor do domínio da música ligeira, "Se'n va anar" não teria tido o significado reivindicativo que assumiu. Por isso a cantou, porque, de facto, tiveram de o convencer com argumentos deste teor. Raimon acabava de chegar de Aix-de-Provence mais politizado que quando tinha partido e aterrar num certame comercial era a última coisa que lhe passava pela cabeça. Explica-o desta forma:

Eu, ao princípio, não queria cantar num festival com aquelas características, que fugia muito ao que eu entendia ser a canção. Os meus princípios eram outros. Tinha feito "Al vent", "A colps", "Som", "La pedra"..., acabava mesmo de gravar a "Diguem no", tinha musicado um poema de Salvador Espriu... Não estava nos meus planos um festival de música comercial. Mas demoveram-me pela questão linguística. A situação do Catalão durante a ditadura era precária, para dizê-lo favoravelmente. E pensei que podíamos contribuir a dar um passo para a normalização linguística, para que o Catalão saísse do domínio privado e entrasse na cultura de massas. E aceitei o desafio, mas com a ideia do serviço a uma causa justa como o era a normalização da língua Catalã.

Joan Fuster teve a clarividência de perceber que a presença do seu jovem protegido num festival daria muito alento à Nova Cançó, tirá-la-ia das catacumbas. Não se salvou de algumas amarguras porque nem toda a gente via com bons olhos estampar aquela nódoa na pureza. Salvador Espriu escreveu a Fuster para que ele evitasse que Raimon entrasse no mundo das variedades. A carta de Espriu acabava assim, com a sua fina ironia: "Mas todos somos p..., o resto é questão de preço". Toda a maquinaria catalanista, com a engrenagem da Edigsa na linha da frente e um certo pacto de não agressão com as autoridades, propiciado por Fèlix Millet Maristany - empresário e mecenas de artistas e iniciativas políticas democráticas, presidente do Orfeão Catalão e cofundador do Òmnium Cultural -, conseguem levar "Se'n va anar" ao Festival, que era trasmitido pela TVE, e estivesse em condição de o vencer. Eram votos do público e "Se'n va anar" impor-se-ia por 583 votos contra os 481 de "Paz".

Josep Benet lembra a imagem insólita da intelectualidade catalã votando num concurso de canção ligeira e a mobilização imediata quando a vitória de "Se'n va anar" ficou consolidada. O próprio falaria com Manuel Cubeles, que trabalhava na TVE, para garantir a cobertura posterior. Cubeles, muito sensível ao mundo da música, impulsionador do movimento de esbarts [grupo ou associação de defesa e difusão das danças tradicionais], decide ajudá-lo. Benet culmina a acção apresentando-se nessa mesma noite do festival na redacção do El Noticiero Universal, que fechava de madrugada porque era um vespertino, e coloca um anúncio do novo disco de Raimon, que continha "Se'n va anar", mas também "Diguem no"; Raimon pôs a sua canção mais dura ao lado da vencedora de um certame popularíssimo. Quem se atreveria a proibi-lo? O anúncio aparece ao lado da crónica do acontecimento e a conspiração fica selada: ganhou uma canção em Catalão e um dos que a defenderam, Raimon, não é um cantor comercial qualquer, senão o autor da canção mais comprometida escrita até àquela altura.

[Não é preciso dizer muito mais. A décima canção é a que com que - juntamente com Salomé - ganhou o Festival que ajudou a mudar o que faltava. Incluída no seu segundo disco (1963).
"Quem se atreveria a proibi-lo?" ]


Tant de temps que ha passat!
Dintre meu, tanta nit!
Dalt del cel, la ciutat
on potser
ella ha fugit.

Se'n va anar
en un dia molt clar.
Jo no sé
si a una terra llunyana.
Se'n va anar
cap enllà.
No sé pas
si tornarà.

Se'n va anar,
va donar-me la mà,
que a un adéu
no li cal cap paraula.
Se'n va anar
i un mirar
m'ha quedat per recordar.

Digue'm, amor, si és ben cert
que més enllà fa bon dia.
Digue'm, si mai que un es perd
és que ha trobat l'alegria.

Se'n va anar,
va donar-me la mà.
Jo no sé
quina cosa em diria.
Se'n va anar
cel enllà
i mai més
no tornarà.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XI)

Os passos decisivos que trilha no mundo da canção fazem-no desistir de dedicar-se à História, concretamente a ser professor na cátedra do doutor Reglà, que já lhe tinha oferecido lugar para seu ajudante, no mesmo ano de 1963 em que obtém a licenciatura académica e a Edigsa edita o seu primeiro disco de quatro temas. Raimon vive em Barcelona em casa de Enric Gispert, que além de o orientar musicalmente, procura levá-lo por bom caminho um jovem sozinho numa cidade de alta probabilidade de "dissipação" [gostei da expressão original...]; Anna Nubiola, a esposa de Gispert, de sólidas convicções morais, ajuda-o, e Raimon, que é o contrário de um cabeça no ar, aceita uma ser por ela gerido. Até que, com o tempo, se tornará um grande praticante e defensor, com a salvaguarda de que falemos de ordem e de organização nas suas acepções funcionais e não imperativas.

No ano de 63, em suma, também se apresenta e ganha o V Festival de la Cançó del Mediterrani, que aconteceu nos dias 20, 21 e 22 de Setembro. Era um certame similar a outros que se faziam, como hoje o de San Remo, destinado a tornar comerciais canções comerciais, que as editoras discográficas apresentavam de acordo com os seus objectivos de promoção. Tinham-no ganho até então nomes pouco conhecidos como Claudio Villa, Nana Mouskouri e Robert Jeantal, e os os pré-destinados a levar o galardão daquela vez era um trio com um nome artístico explosivo, mas em realidade inofensivo, TNT (Tim, Nelly, Tom). Não valiam nada, mas defendiam uma canção que iniciaria a campanha propagandística dos XXV Años de Paz, que segundo o calendário franquista se assinalavam em 1964; eram, portanto, os candidatos oficiais. A canção, de Isidre Sola e Carles Laporta, levava como título "Paz", aquela paz fictícia que Raimon destroçaria em tantas canções, especialmente em "Sobre la Pau", composta em 1967 e dedicada a Che Guevara, morto naquele ano vítima de uma embuscada da CIA.

A fictícia paz edulcorada dos TNT juntava demasiada ideologia do nacionalcatolicismo, era como uma prece feita hino de grandes palavras que todos os fascismos têm invocado para violá-las sistematicamente. José María Pemán, um dos escritores oficiais do Movimiento Nacional, ao escrever o hino do Congresso Eucarístico de Barcelona, celebrado em 1951, incluiu nela tanta "paz" que a viam como o principal activo, como a unidade que postulavam, desde os textos de Primo de Rivera até ao pluralismo nacional de Espanha. A letra de "Paz", protótipo da canção fraca e sem vocativos invocando o Senhor, dizia:

You voy sembrando canciones
al mundo por toda la paz
porque el que siembra ilusiones,
recoge frutos de paz.

Paz, Señor, en el cielo y la tierra,
paz, Señor, en las olas del mar,
paz, Señor, en las flores que mueren
sin saberlo la brisa al pasar.

Tú que has hecho las cosas tan bellas
y les has dado una vida fugaz,
pon, Señor, tu mirada sobre ellas
y devuelve a los hombres la paz.

Hoy he visto, Señor, en el cielo
suspendido en un rayo de luz
dos palomas que alzaron el vuelo
con sus alas en forma de cruz.

Haz, Señor, que vuelvan a la tierra
las palomas que huyeron, Señor,
y la mecha que enciende la guerra
se confunda con la paz y el amor.


Era muito bom, até, que os defensores deste subproduto fossem estrangeiros para demonstrar que a autarquia [Catalunha] tinha morrido. "Paz" nascia destinada a ser banda sonora de uma montagem propagandística, como resposta à onda de protestos que desencadearam em 1963, no interior e exterior, a greve dos mineiros das Astúrias e consquente solidariedade sentida por todo o lado, e a execução de Julián Grimau. A saturação da jurisdição militar e a péssima imagem que dava ao estrangeiro levar civis a conselhos de guerra, vão forçá-los a criar o Tribunal de Orden Público, instância especial para a repressão de qualquer exercício de liberdades democráticas, que a ditadura maquilhava com o objectivo de manter a paz. Esta é a paz com a qual Raimon reduz a pó a ficção franquista:


[E aqui fica a canção número 9 na caixa de música, Sobre la Pau. A versão em escuta é a do explosivo e marcante concerto de Madrid, "El Recital de Madrid", editado em 76. Podia ser outra, mas foi esta. A versão, digo...]

De vegades la pau
no és més que por: /
Às vezes a paz
não é senão medo:
por de tu, por de mi,
por dels homes que no volem la nit. /
Medo de ti, medo de mim,
medo dos homens que não queremos a noite.

De vegades la pau
no és més que por.

De vegades la pau
fa gust de mort. /
Às vezes a paz
sabe a morte.

Dels morts per sempre,
dels que són només silenci. /
Dos mortos para sempre,
dos que são apenas siêncio.

De vegades la pau
fa gust de mort.

De vegades la pau
és com un desert
sense veus ni arbres,
com un buit immens on moren els homes. /
Às vezes a paz
é como um deserto,
sem vozes nem árvores,
como um vazio imenso os homens morrem.

De vegades la pau
és un desert. /
Às vezes a paz
é um deserto.

De vegades la pau
tanca les boques
i lliga les mans,
només et deixa les cames per fugir.
De vegades la pau. /
Às vezes a paz
fecha as bocas
e ata as mãos,
só te deixa as pernas para fugir.
Às vezes a paz.

De vegades la pau
no és més que això:
una buida paraula
per a no dir res.
De vegades la pau. /
Às vezes a paz
não é mais que isso:
uma palavra vazia
para não se dizer nada.
Às vezes a paz.


De vegades la pau
fa molt més mal;
de vegades la pau
fa molt més mal.
De vegades la pau. /
Às vezes a paz
faz muito mais mal.

Às vezes a paz
faz muito mais mal.
Às vezes a paz.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Diguem no (1963)

Ep de 1963, onde está a primeira gravação de Diguem No.




Outros discos em que surge Diguem No. Excepto o terceiro (single gravado depois de ter deixado a Edigsa) e o antepenúltimo (regravação de todas as canções até então, na compilação de dez discos Totes les Cançons), todas as outras gravações são ao vivo.
De cima para baixo (estes dez), contêm respectivamente gravações de 1966, 1967, 1968, 1968, 1971, 1972, 1976, 1981, 1993, 1997.

[A canção de hoje, a oitava de Raimon na caixa de música, é a versão de Diguem No que Raimon gravou primeiro, incluída mais uma vez no seu segundo Ep, de 63. Canção importantíssima na sua obra e na vida colectiva de um país. Voltaremos, portanto, a ela. Mais uma que terão de descarregar para ouvir em tempo real...]

Ara que som junts
diré el que tu i jo sabem
i que sovint oblidem: /
Agora que estamos juntos
direi o que tu e eu sabemos
e que amiúde esquecemos:

Hem vist la por
ser llei per a tots.
Hem vist la sang
-que sols fa sang-
ser llei del món. /
Temos visto o medo
ser lei para todos.
Temos visto o sangue
- que só gera sangue -
ser lei do mundo.


No,
jo dic no,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món. /
Não,
Eu digo não,
Digamos não.
Nós não somos desse mundo.


Hem vist la fam
ser pa
per a molts.
Hem vist qu'han fet
callar a molts
homes plens de raó. /
Temos visto a fome
ser pão
para muitos.
Vimos que fizeram
calar muitos
homens cheios de razão.

No,
jo dic no,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món.

No,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món.