"Al vent" representa uma peça importante na cultura catalã, e por arrastamento noutras culturas peninsulares que se reclamavam da Nova Canção, em geral, e de Raimon, em particular, para dar seguimento a processos creativos neste âmbito. O trigésimo aniversário do lançamento do disco "Al vent" daria a medida certa do Raimon que começou a construir-se a partir daquele tema.
O dia de San Jordi de 1993, na Barcelona fashion pós-olímpica, Raimon continuava a ser muito mais que actualidade: à sua volta organizava-se um dos acontecimentos culturais de maior magnitude em torno da música. No Palau Sant Jordi, sede símbolo dos Jogos, criado por Arata Isozaki, Raimon juntava 18 mil pessoas na plateia e a mais brilhante pléiade de cantores e músicos de qualidade jamais vista num palco. Daniel Viglietti, Joan Manuel Serrat, Paco Ibañez, Luís Cília, Ovidi Montllor, Pete Seeger, Quico Pi de la Serra, Mikel Laboa, Warabiza, Michel Portal, Josep Pons, Antoni Ros Marbà, o Coro Sant Jordi, dirigido por Oriol Martorell, e a banda La Lira Ampostina, que recuperaria o Raimon flautista.
Como documentos vivos deste mega-recital ficaram um vídeo e duas canções do concerto, que estão incluídos no décimo Cd da caixa intitulada Nova Integral. Edició 2000. Os dois temas são "Oh, desig de cançons", que se estreava, e "Com un puny".
O grito da Vespa tinha conseguido o que nenhum outro cantor havia alcançado no mundo mediático. Transmissão em directo pela TV3 na Catalunha e em diferido pela TVE para toda a Espanha. Notícia em todos os diários de Barcelona e, o que é mais significativo, comentários editoriais; estes espaços estão reservados quase exclusivamente para a política, temas internacionais, economia e sociedade. Um cantor merecedor de editoriais no La Vanguardia e no El País foi, efectivamente, um facto jornalístico insólito.
Mas para sintetizar a trajectória de "Al vent" - e a sua circunstância - que se percorre neste capítulo, a peça idónea é o artigo que escreveu no El País (25 de Abril de 1993) Manuel Vázquez Montalbán, amigo íntimo de Raimon. Com ele encerramos este capítulo e começaremos o próximo:
Por um montento consegui sair de mim, da minha presença no Palau Sant Jordi, e vi-me com Salvador Clotas, Martín Capdevilla e Ferran Fullà, os quatro, na escula da prisão de Lérida em 1963, à volta de um pequeno disco em cuja capa aparecia um moço da nossa idade com uma guitarra debaixo do braço, o anúncio de canções como "Al vent" e uma apresentação a cargo de Joan Fuster. Nós, os valencianos, tínhamos por companhia na cela, ao pé de Sweezy, Baran, A estrutura da lírica moderna, Álgebra moderna; cada louco, cada estudante com o seu tema. A voz de Raimon soou presa naquela escola-prisão, mas começou a elevar-se e alcançou para além dos barrotes o voo das andorinhas e a línha imaginária das terras do Segre. Ao acabar "Al vent" percebemos que tínhamos ouvido algo profundamente novo e as vibrações da poderosa voz do valencianismo prometiam partir os vidros da estação e os caixilhos de uma cultura ameaçada pelos inimigos exteriores e pelos amigos que às vezes a asfixiavam por excesso de protecção.
Por um montento consegui sair de mim, da minha presença no Palau Sant Jordi, e vi-me com Salvador Clotas, Martín Capdevilla e Ferran Fullà, os quatro, na escula da prisão de Lérida em 1963, à volta de um pequeno disco em cuja capa aparecia um moço da nossa idade com uma guitarra debaixo do braço, o anúncio de canções como "Al vent" e uma apresentação a cargo de Joan Fuster. Nós, os valencianos, tínhamos por companhia na cela, ao pé de Sweezy, Baran, A estrutura da lírica moderna, Álgebra moderna; cada louco, cada estudante com o seu tema. A voz de Raimon soou presa naquela escola-prisão, mas começou a elevar-se e alcançou para além dos barrotes o voo das andorinhas e a línha imaginária das terras do Segre. Ao acabar "Al vent" percebemos que tínhamos ouvido algo profundamente novo e as vibrações da poderosa voz do valencianismo prometiam partir os vidros da estação e os caixilhos de uma cultura ameaçada pelos inimigos exteriores e pelos amigos que às vezes a asfixiavam por excesso de protecção.
Contracapa de Al vent (1963),
com texto de apresentação de Joan Fuster
Tantas coisas começaram com "Al vent", e anteontem [dia 23 de Abril, dia do concerto] a canção de Raimon mostrou a sua vocação para a eternidade e fez-se novamente a voz do cantor, mas também se mostrou apta a japonesismos e para ser versionada pela a banda [filarmónica] valenciana. O jacobeo de "Al vent" tinha convocado peregrinos de todas as terras da canção e de todas as terras de Espanha. Houve quem trouxesse os seus filhos para que compreendessem de que precárias fontes se alimentava a esperança naqueles tempos em que estar "ao vento" ou "dizer não" te garantia um carimbo, obviamente secreto, de subversivo; mas o surpreendente do recital de Raimon e dos alegres moços companheiros da sua noite liga-se a uma sensação colectiva de que as palavras haverão de se libertar da insustentável leveza do saber e apostar pela descrição da desordem. A nostalgia que se escondeu levemente nos gaseados tectos do palácio catalão-japonês e a comunicação que se estabeleceu na sala capturava por sua vez a consciência, constatação crítica por todas as tentações que tentaram falsificar tantas origens para esconder o obstáculo das identidades.
Ali estava Raimon, no palco, a oxigenar tudo com a sua voz de furacão e o seu silêncio educado por meio de Espriu e Mompou e Serrat a recuperar canções de madrugada fugitivo de ida e volta do Poble Sec [lugar onde nasceu Serrat], fugitivos de ida e volta como todos os que tivemos pátrias de infâncias pequenas e erosionadas. Ali estava Quico a demonstar que tampouco o tempo passou para o "homem da rua", que continua com o seu traje cinzento à espera da ressurreição das almas e das carnes. E Paco, Paco Ibañez a chamar à ordem os políticos e a deixar os "cavalos a galopar" para que enterrassem no mar insuficiências e cansaços democráticos. E Viglietti, que nos lembrou o seu terceiro mundo, o nosso quarto mundo; ou Seeger, que nos ajudou a recuperar a memória de "Ay Manuela!" ou "Ay Carmela!"..., que eram a mesma derrotada, confiante em que as canções contassem a verdade da Vida e da História. Montllor: porque não canta Montllor se canta tão bem como sempre e melhor que antes desse sempre? E Cília, tão necessária a sua voz? Laboa, o musicador essencial.
Quando voltei da prisão de Lérida ao Palau Sant Jordi, não levava em mim o consolo da nostalgia, senão a impressão de que o acto a que assistimos não tinha nada que ver com uma reunião de ex-combatentes ou de ex-presos. Em muitos momentos foi uma reunião intrinsecamente subversiva, ainda que talvez a palavra "subversão" fosse um caligrama da grande reprodução de Miró, que, na retaguarda [um mural fazia de fundo] e à sua sublimada forma, sempre pontou a favor das coisas necessárias. Exacto. Foi um acto necessário de balanço e de "hasta aquí hemos llegado!".
[Encerramos aqui o IV capítulo com o fim deste concerto. A canção é mais que obviamente "Al vent". E que pena não poder dar-vos também a ouvir a original, a de 1963...]
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