terça-feira, 4 de março de 2008

V - Caminant, amics (II)

Raimon conheceu Salvador Espriu pelos fins do Verão de 1963. Espriu era um poeta muito reconhecido, isso que se dizia, marimbando-se, um figurão e, como a Raimon lhe fazia espécie abordá-lo directamente, pediu a Joan Fuster que lhe fizesse uma carta de apresentação e assim, uma vez lida, Raimon ligar-lhe-ia para se encontrarem. Foi assim e quando Raimon lhe telefonou deparou-se com uma surpresa: "Admiro-o profundamente", respondeu a nasalada voz do poeta. Raimon apenas tinha gravad um pequeno disco e ainda não o tinha lançado na popularidade o Festival de la Cançó del Mediterrani, mas Espriu, homem de pouca vida na rua mas - podemos dizê-lo - com as antenas viradas para todos os lados, já tinha ouvido aquele Ep e intuia que ali havia material de qualidade.

Espriu tratava de temas que eu compartia, mas ele expressava-os muito melhor do que eu alguma vez pudera fazer - explica Raimon -. Ele era mais conhecido pela poesia social, pela La Pell de Brau, mas a mim o que me interessava era a poesia mais íntima, que alguns consideram a mais fechada ou hermética. Era o lirismo contido de El Caminant i el Mur, ao qual pertencem as Cançons de la roda del temps, que são as primeiras que musiquei. Espriu era um grande poeta.

Ficámos em casa de Espriu, que então ficava no magnífico edifício de Domènech i Montaner, hoje Hotel Casa Fuster, onde o Passeig de Gràcia passa a ser Gran de Gràcia. Falámos desde as oito da noite até às 4 da manhã. Espriu, a austeridade monacal em pessoa, não jantava; Raimon tampouco o fez, mas aceitou um bom conhaque. Temas de conversa, sobretudo poesia, gostos partilhados, como agora [T.S.] Eliot, [Ezra] Pound, [Luis] Cernuda, [Nicolás] Guillén.

Quando o clima já estava criado e foi preciso, Raimon cantou-lhe "Cançó del Capvespre", único poema que tinha musicado até àquele momento. Raimon sabia que La Pell de Brau se tinha tornado num best seller, em género minoritário e língua minoritária, um mérito enorme, mas achava que não era o melhor da obra de Espriu. Mas isso seria aprofundado e partiria para as Cançons de la roda del temps, que fazem parte do livro El Caminant i el Mur, que é lírica pura e dura, e que Raimon interpretaria depois, já com o nihil obstat do autor. Espriu ficou muito contente pela opção pelo mais difícil e aparentemente menos comercial... Tão pouco comercial que, apesar de Raimon ter conseguido um desenho de Joan Miró para a capa [do disco], Edigsa adiou a edição de todo o ciclo para o concentrar num Lp, porque pensavam que nunca venderia. Pois, enganaram-se: as pessoas acabam sempre por se surpreender com as previsões que fazem.

Espriu ficou encantado com as Cançons de la roda del temps e agradaram-lhe tanto que pediu a Raimon que lhe escrevesse um preâmbulo na edição francesa de La Pell de Brau, um desafio, e até que pusesse música a um poema que tinha escrito em 1964 em homenagem a Joan Salvat-Papasseit, "Inici de Càntic", na comemoração do quadragésimo aniversário da sua morte. Espriu, que era muito polido, pôs-lhe uma dedicatória: "Para que Raimon o cante". Um ano depois, Raimon cantava-o, com o seu arranque mais jondo: um "Ai" que junta dois compassos, que é uma das configurações harmónicas mais complexas de toda a obra raimoniana, sete bemóis na armadura, a estranha tonalidade de Dó bemol maior..., que convida a ser interpretada com um transporte subtil para fazer desaparecer a desafinação das mudanças... mas esta é uma guerra para criptógrafos à qual o leitor não qualquer obrigação de ir - como a nenhuma, obviamente.

Edição francesa de Cançons de la Roda del Temps (CBS, 1967)

[A canção para hoje é então a magnífica Inici de Càntic, originalmente incluída no disco com a capa de Miró (1966), aqui reproduzida. A versão que podemos ouvir, a 13ª canção na caixa de música, é a regravação que fez para a primeira integral, de 1981. Se bem que esta não tenha a introdução supracitada, escolhi-a porque penso que os arranjos orquestrais transmitem melhor a tensão e a intenção do poema. Uma última nota para referir que me abstenho de o traduzir. Pelo menos por agora].

Ara digueu: "La ginesta floreix,
arreu als camps hi ha vermell de roselles.
Amb nova falç comencem a segar
el blat madur i amb ell, les males herbes."
Ah, joves llavis desclosos després
de la foscor, si sabíeu com l'alba
ens ha trigat, com és llarg d'esperar
un alçament de llum en la tenebra!
Però hem viscut per salvar-vos els mots,
per retornar-vos el nom de cada cosa,
perquè seguíssiu el recte camí
d'accés al ple domini de la terra.
Vàrem mirar ben al lluny del desert,
davallàvem al fons del nostre somni.
Cisternes seques esdevenen cims
pujats per esglaons de lentes hores.
Ara digueu: "Nosaltes escoltem
les veus del vent per l'alta mar d'espigues".
Ara digueu: "
Ens mantindrem fidels
per sempre més al servei d'aquest poble
".

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