quinta-feira, 6 de março de 2008

V - Caminant, amics (III)

Inici de cântic é um poema bem acabado no qual o autor concentra, na plenitude literária formal, dois dos seus eixos temáticos: a salvação de uma língua que se pensava que não sobreviveria à agressão franquista, e a fé no povo, que era, no seu entender, a forma plural da espécie Homem, medida tangível de todas as coisas. O poeta ficou tão contente pela versão musicada de Inici de Cântic, de facto uma canção poderosa e emblemática, que acabou por alterar a dedicatória: "A Raimon, com o meu agradecido aplauso".

Depois do êxito, Espriu tentou Raimon para que musicasse poemas que ele queria, especialmente os do seu último ciclo, Per a la bona gent, coisa que nem sempre Raimon fez, porque casar letra e música apresenta muitas vezes mais limitações que o casamento canónico. A segunda parte de Per a la bona gent, intitulada Intencions, leva este repto: "Para que Raimon cante intencionalmente, talvez um dia, todos estes versos". Até agora, musicou dois dos dez.

Tema definitivamente espinhoso para ser cantado, por causa das barreiras entre Catalão e Caló, a língua mestiça dos ciganos que Espriu tanto estimava, é Venda i passió de la Melera, que leu para Raimon com entusiasmo. Raimon não o musicou, mas fê-lo com a longa salmodia He Mirat Aquesta Terra, poema XXIV do Llibre de la Sinera, que se juntou à lista dos preferidos do escritor, segundo fez constar no texto incluído na primeira versão da obra completa de Raimon, no ano de 1981. Na Nova Integral. Edició 2000, Raimon conta com vinte e uma canções com textos de Salvador Espriu. O poeta dizia assim do cantor em meados dos anos setenta:

Raimon é um homem que estimo profundamente e por quem sinto uma grande admiração. Penso que no complexo mundo da Cançó é um caso absolutamente único e excepcional. Raimon criou uma obra pessoal muito considerável e dedicou muita atenção à minha poesia, porque, como ele disse, a recolha da minha obra completa é o seu livro de cabeceira. Leu-me tão bem, e leu-me sob as diversas matizes da minha poesia, que, no meu entender, as suas melhores canções, diria mesmo o complexo, não a letra ou a música, foram criadas através dos textos de Ausiàs March, que é o poeta número um da literatura catalã, e através das minhas canções, sobretudo o elepê que dedicou às Cançons de la Roda del Temps, que é simplesmente sensacional.

Raimon contactaria com Espriu até ao fim. Ficou-lhes um projecto bonito por fazer. Em Dezembro de 1984, apenas um par de meses antes da morte do poeta, falavam de um espectáculo Espriu-Raimon, que consistiria em interpretar todas as canções conjuntamente, com uma orquestra sólida e os arranjos de Antoni Ros Marbà, se o maestro pudesse, dirigida por ele mesmo, e uns textos introdutórios a cada uma das canções que Espriu escreveria com esta finalidade, coisa com a qual, Raimon, para lá de cantar, faria de actor, recitando os monólogos. Não houve tempo, a temida Dama à qual Espriu tinha dedicado tanta poesia, precipitou a sua partida.

Sem comentários: