A Rua Branca é o down town da paisagem sentimental da infância de Raimon, também muito presente na sua obra. A alma da casa é a mãe, uma matriarca obrigada pelas circunstâncias de uma viuvez muito precoce. Depois, os irmãos e amigos que com ela compartem a espera do regresso, como a canção o lembra, "germans i amics / que em volen / i esperen, com ma mare, / que jo torne com abans"... Raimon é o mais novo dos cinco irmãos. O mais velho chamava-se Pepe, mas todos, e até o próprio Raimon, lhe chamava "bigode"; Pepe morreria no fim dos anos noventa. O segundo era Antoni, Toniet, mas Raimon não chegou a conhecer por culpa de uma morte prematura. Seguiam-se-lhes Rafael e Enric.
Duro para Raimon seria, em 1987, mudar a conjugação do presente para o passado a um outro dos temas que fazem de Dolors Sanchis motivo de canção: "Ma mare ho guarda tot", "Ma mare ho guardava tot", verso de "Molt Lluny". Dolors Sanchis morreria muito idosa, com noventa e três anos, depois de um tempo com problemas de ossos e mobilidade, facto que para uma pessoa muito activa era sempre razão de angústia, mas que suportaria com paciência. Raimon fazia tudo o que podia, com o seu bom humor, para a ajudar, ligava-lhe, ia vê-la... "Molt Lluny" é uma canção que faz referência precisamente à data de que estamos a falar. Raimon encontra, nesta canção, "les nits que ens passàven / caminant, amics, / pels carrers de Xàtiva".
Umas pinceladas de Joan Fuster descrevem aquela Xàtiva na plenitude literária da sua prosa. É um belo parágrafo do seu livro Raimon, publicado em 1964, em resultado de uma conversa durante o percurso ferroviário de Xàtiva a Barcelona, que a tracção a vapor fazia durar até sete horas:
A Rua Branca de Xàtiva é, sobretudo, os arredores: limite com o descampado, cosido, num bairro de má urbanização, rente às muralhas do castelo. As casas são de planta baixa e de um só piso, limpas, claras. A vizinhança, uma vizinhança de lavradores e artesãos, não nega ao rito valenciano - talvez árabe - da calçada, e as fachadas esbanquiçadas reverberam rudemente ao sol. Quatro passos mais adiante, estende-se a Xàtiva dos brasões floridos e dos cognomes duradouros: aqui não há senão "povoação [povo]". Hoje é "povo" calado e conformado, trabalhador e irónico. A paisagem dá uma sensação de paz rotinária, de vida vivida sem pressa: crianças que jogam à bola, pequenos trabalhadores trémulos, anciãos na xacota ou a jogar à visca, uma loja ou uma barbearia melancólicas, mulas cansadas que voltam das cargas... A casa da esquina é a dos Pelegero: pequena, vulgar, pouca coisa.
Fala também Raimon deste pequeno universo que cresce, mas na memória, quando refere "el llaurador del meu poble" ("o lavrador do meu povo") como metáfora que tem mais à mão para uma das primeiras canções de amor, "Treballaré el teu Cos", composta quando tinha apenas vinte e quatro anos e ainda não tinha decoberto o suficiente os recursos inegotáveis da retórica. A paisagem de então está também imortalizada noutros versos. "Al mur blanc dibuixada / l'ombra de la llimera. / El llebeig despentina / el pentinat dels arbres" (despenteia o penteado, aqui, vinte anos antes, já sabia muito, de retórica). A árvore mediterrânea por excelência, o pinheiro, está presente em duas canções: "el verd suau dels pins llepats de pluja" ("o verde macio dos pinheiros limpos despidos pela chuva") e "de verd de pins, / de mar lluent" ("de verde de pinheiros, / de mar reluzente"). Uma ampliação da flora em "Octubre dolç": "Bedolls, llorers, oms i faigs, castanyers" ("Bétulas, loureiros, ulmeiros e faias, castanheiros").
E a reivindicação de tudo junto materializada com "no vull oblidar que sóc de poble" ("não quero esquecer que sou do povo", acrescentada à celebérrima asserção "qui perd els orígens / perd identitat" ("que perde as origens / perde a identidade"), que amiúde passa por anónima a partir da extensão por sinédoque. É natural e lícita a extrapolação de povo a país, mas é claro que Raimon se refere a Xàtiva, já que o texto e o contexto da canção da qual forma parte este par de pentassílabos - o decassílabo de Ausiàs [March] partido pela pausa interna em dos hemistíquios! -, não são alusivos a outra realidade. Depois, quando escreve o diário Les Hores Guanyades, Raimon clarifica este sentido de pertença limitada que não é mais que a posta em prática que "nação" vem de "nascer" e "pátria" de "pai":
Passámos por Xátiva à vinda (de Alcoi), por Bixquert, Albaida, Adzaneta, Benigánim, Bellús. Nomes próprios que me trazem uma enorme carga vital. Amendoeiras, ameixoeiras, pessegueiros em flor. Paisagem de secura, e a horta à espera no vale de Xátiva. Cenário das minhas mais íntimas vivências, lembranças de todo o meu viver, da luz que amei, das cores dos meus sonhos, espaço da minha aprendizagem do mundo. Que desejo imenso de ficar parado no tempo, naquele espaço e entre a gente da que nasci e que estimo, agora, desde a grande cidade que é Barcelona! Sensação de despojamento de sentimentos perante a paisagem da minha infância. Regresso nítido do puto brincalhão e feliz que fui, amigo e apaixonado. Poder de evocação da fonética, quão macio alcance da língua! Eu não tenho uma ideia de pátria; tenho, em vez disso, sentimento de pertencer a um grupo humano concreto. E este sentimento renova-se através da linguagem, desde a música do falar quotidiano da gente que ficou onde eu nasci. A língua é o meu possível patriotismo.
"Jo Vinc d'un Silenci" é o máximo expoente da descrição do mundo interior registado no vinil analógico dos anos de infância e juventude. Desta canção saem as "classes subalternes", referência social de entrada, as praças, as ruas, cheias de "xiquets que juguen / i de vells que esperen", a animação habitual que nas vilas e nos bairros se manifesta em plenitude, as pequenas oficinas, o campo, a divisão "on comença l'horta / i acaba el secà", que se visualiza nitidamente desde o cimo do castelo de Xátiva.
[Jo Vinc d'un Silenci foi primeiramente registada no disco "El Recital de Madrid", no dia 5 de Fevereiro de 1976, e é essa mesma a terceira canção que disponibilizámos na caixa de música]
Jo Vinc d'un SilenciJo vinc d'un silenci /
Eu venho de um silêncio
antic i molt llarg /
antigo e muito longo
de gent que va alçant-se /
de gente que se vai levantando
des del fons dels segles
desde o fundo dos séculos
de gent que anomenen /
de gente a que chamam
classes subalternes, /
classes inferiores,
jo vinc d'un silenci /
eu venho de um silêncio
antic i molt llarg. /
antigo e muito longo.
Jo vinc de les places /
Eu venho das praças
i dels carrers plens /
e das ruas cheias
de xiquets que juguen /
de crianças que brincam
i de vells que esperen, /
e de velhos que esperam,
mentre homes i dones /
enquanto homens e mulheres
estan treballant /
estão a trabalhar
als petits tallers, /
nas pequenas fábricas,
a casa o al camp. /
em casa ou no campo.
Jo vinc d'un silenci /
Eu venho de um silêncio
que no és resignat, /
que não é resignado
d'on comença l'horta /
de onde começa a horta
i acaba el secà, /
e acaba a secura
d'esforç i blasfèmia /
de esforço e blasfémia
perquè tot va mal: /
por que tudo vai mal:
qui perd els orígens /
quem perde as origens
perd identitat. /
perde a identidade.
Jo vinc d'un silenci /
Eu venho de um silêncio
antic i molt llarg /
antigo e muito longo
de gent sense místics /
de gente sem místicos
ni grans capitans, /
nem grandes capitães
que viuen i moren /
que vivem e morrem
en l'anonimat, /
no anonimato
que en frases solemnes
no han cregut mai. /
que nunca acreditaram
em frases solenes.
Jo vinc d'una lluita
que és sorda i constant, /
Eu venho de uma luta
que é surda e constante
jo vinc d'un silenci
que romprà la gent
eu venho de um silêncio
que a gente romperá
que ara vol ser lliure
i estima la vida, /
que agora quer ser livre
e ama a vida,
que exigeix les coses
que li han negat. /
que exige as coisas
que lhes foram negadas.
Jo vinc d'un silenci
antic i molt llarg,
jo vinc d'un silenci
que no és resignat,
jo vinc d'un silenci
que la gent romprà,
jo vinc d'una lluita
que és sorda i constant.
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