sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

II - A Xàtiva, al Carrer Blanc (I)

O dia 2 de Dezembro de 1940 era uma segunda-feira, e segundo a Hoja Oficial de Valência - diário único aquele dia, já que não saíam jornais para que os jornalistas pudessem fazer festa aos domingos -, aconteciam todas as seguintes coisas: Southampton ardia aos bombardeamentos da Luftwaffe; Cárdenas cessava as suas funções de presidente do México; começava a campanha natalícia de doar roupa aos pobres; o Valência empatava com o Múrcia, que estava em último, em Mestalla, e o Barça metia três golos ao Madrid num dia em que uma grade soçobrou pelo excesso de gente; na Igreja Arxiprestal de Sagunt começavam rosários solenes em honra da Puríssima, “en sufragio de los caídos de la población”, e estava repleta, porque o termómetro tinha descido até aos seis graus; a programação apregoava a estreia de Eloisa está debajo de un almendro, de Jardiel Poncela; no Teatro Principal, última representação de Lo Increíble, de Benavente; no cinema Olympia rodavam, naturalmente com muito êxito, Sin novedad en el Alcázar, evocando a gesta do “herói” nacional Moscardó em Toledo; no Gran Teatro, um anúncio que metia medo: um soldado com a cruz gamada num braço e numa bandeira convocava a um longo documentário, desde as três da tarde até às zero horas, intitulada Camisas marrones. El despertar de una nación. Película basada en el Movimiento Nacional-Socialista alemá, fiel reflejo del nuestro.


Raimon vem ao mundo naquele dia, “a Xàtiva, al carrer Blanc”, número 9, como no-lo diz na “Cançó de la mare”, Dolors Sanchis Climent, que então tinha quarenta e sete anos, e que vai ser uma pessoa muito importante na vida de Raimon pela sua tarefa e rigidez e também pelo infortúnio da morte prematura do pai, Josep Pelegero Franco, quando Raimon, o seu quinto filho, tinha acabado de fazer vinte anos. Josep era carpinteiro, como o seu patrão, e Raimon lembra-se da rectidão do pai com as artes que eram ideais para julgar, sobretudo a plaina e a perigosa serra, o valor de uso e o valor de troca - terminologia marxista que lhe vai servir muito bem para perpetuar “Societat de consum” - da madeira de sobreiro, que costumava acabar no fogo, à volta do qual a família se reunia a cada fim de tarde. O hábito do calor, juntamente com a hipocondria de que sofrem todos os que cantam e, portanto, fazem do seu corpo o seu instrumento musical, vão fazer com que Raimon gastasse os primeiros dinheiros a pôr aquecimento no piso que comprou em Barcelona.


Josep Pelegero vai ser importante durante o pouco tempo que Raimon vai poder viver com ele. Era um homem terno que lhe explicava contas, que vivia o anarcossindicalismo sem se sentir escravo do dinheiro e "visitando" a prisão ciclicamente. Josep Pelegero morre quando Raimon tem, portanto vinte anos, "que no són rés, diuen els savis" ("que não são nada, dizem os sábios"), o pouco tempo que vai durar o Ramon de nome de baptismo que lhe puseram e pelo qual apenas vai ser usado pelos familiares mais próximos, já que o apocorístico "Pele" se vai impor. Ninguém, contudo, o pronunciará com a fonética adequada, até Annalisa, sua esposa, o adoptar, abrindo o e à italiana - va bène -, uma vez que Annalisa é de Òstia, o velho porto que começou a estender Roma a todo o mundo conhecido. Disto, os eclesiásticos vão permitir-se, depois, o jogo de palavras urbi et orbi, a cidade e o mundo.

Pelegero deve pronunciar-se não à Castelhana, "com um g como se tratasse de puxar especturação", como dizia Joan Fuster, mas através do Latim de onde derivaram as línguas românticas: Pellecciero - Pellegiero - Pèléchéro; de facto, a fonética do Valenciano preserva o g oralmente como o x do Catalão do Principado (Andorra), o tx do Euskera e o ch do Castelhano. Isto explica-se simplesmente porque Pelegero é gentílico de ADN latino transmutado em Italiano; é gero, o que traz ou transporta, pele, pele; uma origem gremial tipicamente da Idade Média, precisamente a etapa em que Xàtiva tinha muitas relações com Itália. Tal como Sanchis, também frequentes vezes mal pronunciado, leva um acento prosódico na a, o Pelegero vai surgir nos vasos comunicantes entre Xàtiva e Roma, de certeza bem perto da extradordinária invasão dos Bórgia.

Os Bórgia de Xàtiva vão tornar-se nos Bórgia italianos precisamente por motivos de manter a fonética valenciana escrita em Italiano, e vão ser, sem dúvida, a família mais influente do Renascimento. Dois papas, Calixto III, entre 1455 e 1458, Alexandre VI, de 1492 a 1503, a mais famosa das cortesas, Lucrécia, e o político César, inspirador da bíblia de qualquer político que queria fazer carreira, O Príncipe, do grande Maquiavel. Xàtiva, berço daqueles inteligentes canalhas que na intimidade falavam Catalão, vai organizar uma extensa exposição, em 1995, explicando quem eram os Bórgia, que vai servir, entre outras coisas, para que Raimon exumasse o historiador que leva dentro contando-o com muita propriedade aos seus amigos. Manuel Vázquez Montalban ficou tão impressionado que escreveu um romance histórico - apenas há um outro na sua larga obra, Gallíndez - com um título que evocava Baroja: Ou César ou Nada.

O fundador da dinastia foi Calixto III, o clérigo que herdou um bocadinho a cisma do papa Luna, que o vai congregar grande prestígio em Roma, que vai acabar por levá-lo ao papado. Vai ser papa durante muito poucos anos, mas tempo suficiente para pôr lá toda a família. Alexandre VI é o mais famoso, porque tem mais lendas negras em cima, mas, a par disso, porque lhe vai caber a divisão do Novo Mundo e se hoje existe Brasil é graças a ele. Tinha muita má fama, isso de "la Santa Sede in mano dei catalani", mas isso por causa dos italianos pensarem que tudo era deles e que os forasteiros iam apropriar-se do território. Havia um forte jogo de interesses na península Itálica, com o papado como um Estado poderoso, com o fim das cidades-Estado, com a república de Veneza em baixo, a ascensão da Toscánia... Era um mundo em plena efervescência, com guerras e mais guerras.

Raimon sabe outras histórias sobre Xàtiva, sabe-as todas. A do outro italiano, o pintor Ribera, seguidor de Caravaggio; a dos árabes que aí vão instalar uma fábrica de papel pioneira; a das embrulhadas dinásticas que vão acabar com o conde de Urgell, e com ele a casta catalã nobre mais antiga, enterrado vivo nos calabouços do castelo; a dos Germanos protossocialistas; a dos resistentes contra Filipe V, que represaliou a cidade com fogo e, como consequência deste triste episódio, o humor negro popular qualifica os xativencs com a fama de "socarrats", um termo muito valenciano que faz menção também ao prestigiado arroz que se cola à paelha. Paelhas, para Raimon, as melhores eram as da sua mãe; depois as da Casa de la Abuela, uma casa de toda a vida que continua a ser paragem inevitável quando vai a Xàtiva.

Quando Raimon nasce, Xàtiva era uma cidade de 18000 habitantes e uma das quatro monumentais do País Valenciano, juntament com Valência, Morella e Oriola. A rua Branca ["el carrer Blanc"] era, no entanto, uma coisa bem diferente: um lugar modesto, que contrastava com a grandiloquência usada às ordens inspiradas de José Antonio Primo de Rivera, que Raimon sempre cita centrando-se na segunda metade do cognome composto, sobrando-lhe um curioso José Antonio Primo, que em Castelhano quer dizer, para além do grau, "pessoa incauta que se deixa enganar facilmente", segundo o quinto significado do dicionário da Real Academia Española.

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