terça-feira, 28 de outubro de 2008

Uma pausa com... "Raimon al Palau"

A 28 de Janeiro de 1967, ou seja, há mais de 41 anos atrás, Raimon actuava no Palau de la Música Catalana. A internacionalização estava feita. No ano passado fizera o seu primeiro Olympia, inaugurando a visita de cantores da Nova Cançó àquela mítica sala parisiense. Como saberá quem tem acompanhado "A Cantiga...", destes concertos resultaram dois elepês.

Hoje, já dia 28 de Outubro de 2008, ouvi pela primeira vez "Raimon al Palau" (e, no momento em que escrevo, ainda apenas uma). Instalado na solidão de um sofá nocturno, as espiras do vinil (porque não existe em digital...) desvelaram o pó dos anos de esquecimento e ausência, anos de isolamento e de silêncio. Contudo, não foram senão 26, os anos, pois é quanto chega a idade do ouvinte. Porque, defende o mesmo, egocentricamente, de certa maneira as coisas só passam a existir quando delas se toma conhecimento.




E como foi possível um disco assim, de um cantor voz de um povo, voz do Povo, a quem foram erguidas muralhas de dificuldades para se exprimir, para estar vivo entre os seus semelhantes... como foi possível? Já não foram a tempo as autoridades...

Em Paris Raimon apresentava as suas canções com breves palavras na língua gaulesa. E cantava, claro. Em Barcelona Raimon apenas cantou. Em Barcelona, o seu silêncio entre as canções que cantou foi mais forte, mais expressivo, pesado e comunicativo que quaisquer palavras introdutórias que pudesse dizer. Porque o Poder, sente-se no ar, não deixava poder.

Que tem de tão especial um cantor que - ele o admitia! - mal sabia tocar guitarra? Quanta carga histórica pode transmitir, por entre este frio que nos emperra, a sua voz e o seu grito?
Fora até numa língua desconhecida, incompreensível, e, sim, senti-lo-íamos. Se não conseguimos extrair significado das palavras, podemos sempre sentir a força com que são proferidas. A mágoa e o sentimento de injustiça cristalizados no grito de Raimon não pode deixar-nos indiferentes. Há nele a força da luta e da esperança, a esperança "que faz ninho" nas pessoas que o escutam e com ele partilham o tempo e o lugar em que lhes calhou viver.

E é isso o que chamaria desde logo a atenção do iniciado ao ouvir uma canção de amor como "Si un dia vols". Como pode uma canção de amor despertar tão calorosas e audíveis reacções por parte das pessoas? Isso acontece quando as palavras dizem muito mais que aquilo que podem dizer. Em Raimon, amor e luta são indivisíveis.

É preciso vivê-lo. E essa será a melhor - e única, talvez - forma de estar em perfeita comunhão com o comunicador. Quando as palavras nem precisam de ser pronunciadas para se fazerem ouvir, para nos fazerem sentir o seu peso.

Comparando-o agora, em "Recital de Madrid", testemunho sonoro também de capital importância, o clima é denso, sim. Raimon fala. Em Castelhano, é certo. Mas fala. Nota-se que muitas barreiras tinham sido já ultrapassadas, que a experiência e as vezes sempre contavam para fazer caminho.

Em "Recital de Madrid", apesar do silêncio, do respeito e da atenção que Raimon conseguia arrancar ao público quando falava

- e o exemplo mais impressionante disto que expressamos está na introdução a "Qui ja ho sap tot" (a 21ª canção, ali ao lado), que nos faz sentir, a determinada altura, que Raimon está ali mesmo, a meio metro de nós, a falar com o tom de voz normal...
... e o público, ao rebentar em gritos e aplausos, vem para nos lembrar que Raimon está perante cerca de 20 mil pessoas! Seria possível isto, hoje? Seria possível tamanha fusão de emissor e receptor, hoje? -

sente-se uma frescura de liberdade para ler os textos - por vezes integrais - das canções, nomear certas pessoas, dizer certas coisas, dar certa entoação ou amplificar as palavras mais importantes.

Em "Raimon al Palau", o clima é tenso. Emblemática e em toda a máxima força, enriquece-se plenamente de sentido a canção "Diguem no", que repete e com a qual encerra o concerto. Sob o silêncio e o ruído forte dos aplausos e das vozes, as outras, as mesmas, que estão perante ele.
E aqui mesmo, perante nós, no disco que agora falou.
Sem dizer mais nada.


(Agora que estamos juntos
Direi o que tu e eu sabemos
E que amiúde esquecemos.

Temos visto o medo
ser lei para todos.
Temos visto o sangue
- que só faz mais sangue -
ser lei do mundo.

Não,
eu digo não
Digamos não.
Nós não somos desse mundo.


Temos visto
a fome
ser pão para muitos.
Temos visto
fechados na prisão
homens cheios de razão.

Não,
eu digo não
Digamos não.
Nós não somos desse mundo.
)

domingo, 14 de setembro de 2008

VI - En tu estime el món - (IV)

O punho fechado a dar título a um tema de amor e representado no final ilustra a ideia que Raimon tem que a vida, nos seus motivos mais elevados, dificilmente se pode dividir em compartimentos estanques que respondem pela terrível etiqueta que classifica e separa. Para Raimon, poesia lírica e poesia cívica vão juntas, amor e luta são um só; e para revelar a chave da claridade, intitulou Cançons d'amor, cançons de lluita ao segundo disco da Integral e os seus recitais que inauguraram o Teatro Grec em 1999. A propósito deste acontecimento, explicava assim a relação amor-luta:

É um binómio que sempre cantei, mas no sentido mais amplo das duas palavras. Não há amor sem luta e não há luta sem um certo tipo de amor. Há uma história concreta, não apenas contra a ditadura, mas contra esta espécie de cama em que sentes que te estão a pôr para que não penses em nada; há esta tensão, e há este amor não apenas de tipo individual mas de tipo colectivo. Numa das últimas canções que fiz escrevi estes versos: "Sozinho e acompanhado, provei ser útil / com canções de amor, com canções de luta". E para citar os dois autores que mais musiquei, a maioria da poesia de Ausiàs March, por um lado, são poemas de amor, e grande parte da reflexão de [Salvador] Espriu sobre o amor e a luta juntos. De forma que o título pode englobar muito do que tenho vindo a fazer e do que penso continuar a fazer.

O tema a que se refere, onde figura explicitamente o dualismo positivo, que acaba com velhos maniqueísmos, chama-se "Animal d'esperances i memòria", e estreou-o nos recitais do Grec. Esta canção versa sobre o que está por trás do laço covalente que propõe. O amor solidário no próprio par, já antecipada em "En tu estime el mon", que projecta a individualidade - "amb tu sé que sóc més lliure" ("contigo sei que sou mais livre") - e o contexto da luta, produto uma vez mais de uma reflexão intensa. Raimon enuncia qual é o denominador comum dos muitos numeradores concretos nos quais se revela: os limites. E deixa a palavra "limites" sozinha entre pontos, para que na sua nudez contemplemos a sua magnitude. Limites à liberdade, limites que normalmente não se podem transgredir, limites pessoais que não sabemos ultrapassar. A canção, por outro lado, tem dois momentos que, mesmo que não citem, evocam Espriu, nos versos finais; onde Espriu é a referência mais clara que Raimon tem da temática cantada. Evoca-o também pelo acróstico; ao poeta agradavam-lhe estes jogos de letras (e os três últimos versos de "Però en la sequedat arrela el pi", que Raimon canta, as primeiras letras, lidas na vertical, dizem "morte"). Raimon escreve o seu nome e o de Annalisa, para isso se destacam a negrito.


["Animal d'esperances i memòria" é das minhas canções preferidas de Raimon, a qual desfaz por completo, se dúvidas houvesse, a ideia de que Raimon é um cantor panfletário ou tópico nos textos que musicou e cantou. É a 20ª canção na caixa de música, extraída da Integral. Edició 2000, e gravada em 31 de Janeiro desse ano, em Lleida, no Auditori Enric Granados.]


Animal d'esperances i memòria
No he volgut ser humà d'altra manera,
No he volgut ignorar i resignar-me
A ser, poc més poc menys, com una fera.
Límits, conec molt bé tants i tants límits.
I visc pugnant contra aquests límits. Límits.
Sol i acompanyat prove de ser útil
Amb cançons d'amor, amb cançons de lluita.

Inventari incomplet de temps i vida.

Refaré aquells camins que vaig fer sol
Ara que amb tu sé que sóc més lliure.
I amb les últimes ratlles del dibuix
Miraré el mar, escoltaré els meus morts,
Ombres estimades que en mi habiten.
Negaré decepcions, continuaré esperances.

/

Animal de esperanças e memória
Não quis ser humano de outra forma
Não quis ignorar e resignar-me
A ser, pouco mais ou menos, como uma fera.
Limites, conheço muito bem tantos e tantos limites.
E vivo pugnando contra estes limites. Limites.
Só e acompanhado provei ser útil
Com canções de amor, com canções de luta.

Inventário incompleto de tempo e vida.

Refarei os caminhos que fiz sozinho
Agora que contigo sei que sou mais livre.
E com os últimos esboços do desenho
Olharei o mar, ouvirei os meus mortos,
Sombras estimadas que em mim moram.
Negarei decepções, prosseguirei esperanças.


[O jornalista e grande estudioso da Nova Cançó Jordi García Soler chamou uma vez à atenção para o primeiro verso. A escolha das palavras é intencional, frisou. Assim, quando Raimon canta

"Animal d'esperances i memòria" (Animal de esperanças e memória)

a frase é homófona de

"Anem mal d'esperances i memòria" (Estamos / Vamos mal de esperanças e memória)

Pareceu-me bem acrescentar esta interpretação aqui, se bem que Antoni Batista a ela não aluda, porque me parece fazer todo o sentido.]

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

VI - En tu estime el món - (III)

Fica, daqueles dias longos, um testemunho de fora da vida artística, o de Artur Sagués, que então estava em Xábia a gerir um restaurante. Artur tinha cuidado (...) com Annalisa e procurava manter um equilíbrio entre a boa cozinha, a cozinha surpreendente e a cozinha de regime. Artur lembra aqueles dias em Xàbia, em que os Raimons iam jantar ao seu restaurante. Os Raimons também estimam Artur de uma maneira especial, e têm seguido o seu percurso de incansável andarilho da gastronomia.

Nos momentos mais complicados , quando a incerteza se juntava ao próprio mal-estar corporal, Raimon tomou partido em três recitais no Palau de la Música. Naquela convocatória, Raimon cantou "Com un puny", a canção em que Annalisa é retratada mais intimamente. A emoção impediu que o último agudo, no qual a canção pára, chegasse sem se desenhar. Fechou o punho erguido como sempre faz ao acabar esta canção e encaminhou-se ao camarim porque aquela emoção se condensara.

[Eis "Com un puny", a 19 canção de Raimon na caixa de música. É a versão que gravou no disco homónimo dos 40 anos do primeiro concerto no Olympia]


Quan tu te'n vas al teu país d'Itàlia /
Quando te vais para Itália

i jo ben sol em quede a Maragall, /

E eu, sozinho, fico em Maragall,

aquest carrer que mai no ens ha fet gràcia /

Esta rua que nunca nos fez rir

se'm torna el lloc d'un gris inútil ball. /

Torna-se-me num lugar cinzento de uma dança inútil.


Ausiàs March em ve a la memòria, /

Ausiàs March vem-me à memória,

el seu vell cant, de cop, se m'aclareix, /

o seu velho canto, de repente, torna-se-me claro,

a casa, sol, immers en la cabòria /

em casa, sozinho, imerso na preocupação

del meu desig de tu que és gran i creix: /

do meu desejo de ti, que é grande e cresce:


"Plagués a déu que mon pensar fos mort

E que passàs ma vida en dorment". /

"Quisesse deus que o meu pensar estivesse morto

E que passasse a minha vida a dormir."


Entenc molt bé, desgraciada sort, /

Percebo muito bem, infeliz sorte,

l'última arrel d'aquest trist pensament, /

a última raíz deste triste pensamento,

el seu perquè atàvic, jove, fort

jo sent en mi, corprès, profundament. /

sinto profundamente em mim

o seu porquê atávico, jovem, forte.


Al llit tan gran d'italiana mida /

Na cama de medida tão italiana
passe les nits sentint la teua absència, /
passo as noites sentindo a tua ausência

no dorm qui vol ni és d'oblit la vida, /

Não dorme quem quer nem a vida é de esquecimento,

amor, amor, és dura la sentència. /

amor, amor, é pesada a pena.


Quan tu te'n vas al teu país d'Itàlia /

Quando te vais para Itália

el dolor ve a fer-me companyia, /

a dor vem fazer-me companhia

i no se'n va, que creix en sa llargària, /

e crescendo não me deixa,

despert de nit somou, somort, de dia. /
acordada de noite e presente de dia.

Em passa això i tantes altres coses /

Acontece-me isso e tantas outras coisas

sentint-me sol que és sentir-te lluny; /

sentindo-me só que é sentir-te longe;

ho veig molt clar quan fa ja cent vint hores /

vejo-o claramente quando já passaram cento e vinte horas

que compte el temps que lentament s'esmuny. /

que conto o tempo que lentamente se desliza.


Vindrà el teu cos que suaument em poses /

Virá o teu corpo que suavemente pousas

en el meu cos quan ens sentim ben junts, /

no meu corpo quando nos sentimos bem juntos,

i floriran millor que mai les roses: /

e florirão melhor que nunca as rosas:

a poc a poc ens clourem com un puny. /

a pouco e pouco nos fecharemos como um punho.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

VI - En tu estime el món - (II)

As primeiras canções de amor e ausência são um acto notarial de namoro e contactam já com Ausiàs March, especialmente com "Veles e vents". Como que, uma vez encetada a relação, Annalisa viajará a Itália muitas vezes, para ver a família, Raimon continuará a alimentar a covalência poética "amor-distância", que atinge a sua máxima expressão em "Com un puny", canção, curiosamente, construída mais em paralelo à versificação de Ausiàs March, mas disso falaremos mais adiante. De qualquer forma, a distância evocada em "Com un puny" - e em "T'ho devia", "Quan te'n vas", "L'unica seguretat" - é diferente da de "Si un dia vols" - e da de "No sé com" e "En el record encara" -; enquanto que em "Com un puny" há a certeza do regresso, em "Si un dia vols" Raimon quase grita na angústia da incerteza.

Raimon esforça-se para tornar a relação possível. Cartas e uma viagem em cima do joelho, o último trunfo, quando se acaba o serviço militar. Vai a Roma expressamente para ver Annalisa, mas regressa sem atingir o resultado esperado. O tempo passa e quando está a dar por mortas as expectativas que lhe restavam, Annalisa responde. Encontram-se num lugar idóneo para estas questões, Paris, em Junho de 1966. E casam-se dois meses depois. Queriam fazê-lo por civil, mas a papelada era complicada e obrigava-os a uma apostasia oficial. Raimon não é crente, mas sempre respeitou e não quer passar por aquilo. Casa-os um capelão amigo de curso de Annalisa, numa cerimónia breve.

Em Les Hores Guanyades, com a sua extraordinária capacidade de síntese, posta à prova canção a canção, Raimon descreve tudo aquilo, um autêntico big bang semtimental, com uma enorme poupança enérgica de palavras:

Em Março ou Abril de 1966, e de Paris, escrevi-lhe, numa última tentativa e com a ideia resignada que tinha conhecido a mulher que me tinha feito homem entre os homens, mas que não tinha sido possível. Com grande e agradável surpresa, responde-me e ficámos a viver juntos em Paris, em Junho. Ela chegou e decidimos viver juntos. Casámo-nos em Agosto de 1966. Desde então ficámos inseparáveis e amámo-nos muito. Amamo-nos muito e compreendemo-nos.

Passaram praticamente quarenta anos e tudo continua como dantes. Uma história pouco vulgar, recolhida nas canções de amor, todas elas pensadas para a mesma mulher. Foram as primeiras que quis gravar ao elaborar a obra completa. Era um projecto insólito e inédito nos anais da cançó, e desbravar caminhos não é fácil e, ainda por cim, é insegura. Raimon não sabia se podia chegar a terminá-la e, não fosse o caso, assegurou-se de que os temas não se tinham composto sem Annalisa ficassem prontos.

Annalisa é fundamental na vida de Raimon, e na sua obra, não só na inspirada directamente nela. Annalisa deixa o seu país e o seu meio e empenha a sua criatividade profissional para que o artista cresça. É muito mais que o que, neste campo, se conhece como mánager; supera este termo por cima, porque tem capacidade de decisão estratégica sobre a abordagem da carreira do cantor, e passa por baixo, porque tem a responsabilidade das coisas mais simples que alguns mánagers não têm de fazer, desde o acompanhamento nas actuações menos espectaculares até à aprovação final das equipas de som. Annalisa, uma todo-o-terreno, faz tudo. A defesa dos interesses de Raimon também lhe requereu não fazer sempre boa cara nem assentir por sistema, e, como Annalisa é culta e educada, e tem formação em Direito, mas é irredutível como os gauleses de Asterix quando os seus interlocutores interpretam os papeis dos romanos!, e é encarada pelos que apenas a conhecem superficialmente como uma pessoa de dureza.

Mas nos momentos mais difíceis desta relação não foram os profissionais, que os houve, porque são ambos obstinados na hora de defender aquilo em que acreditam. Sem qualquer espécie de dúvida, o pior momento foi a doença de Annalisa, longa e com momentos complicados, que felizmente superou. Raimon mudou os seus hábitos, até aprendeu a conduzir ,apesar de detestar o volante, e procurou sempre que Annalisa tivesse companhia, as mínimas preocupações para lá das inevitáveis da saúde, e as máximas distracções e as pequenas satisfações quotidianas.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

VI - En tu estime el món - (I)

As primeiras canções de amor que Raimon comporia datam de 1965. E enumera-as: "Cançó d'amor núm. 1: En tu estime el món", C"ançó d'amor núm. 2: Treballaré el teu cos", "Cançó d'amor núm. 3: Si un dia vols", e "Cançó d'amor núm. 4: No sé com". Com a primeira e "En el record encara" edita um disco simples e canta-as frequentemente nos concertos, porque a ditadura não está para brincadeiras e censura as temáticas mais sociais.

O Epê "Cançons d'Amor" (1965, Edigsa)

[A canção que dá título a este capítulo,
"En tu estime el món",
é a 18 canção de Raimon na caixinha de música.
A versão que podemos ouvir foi extraída da Integral. Edició 2000.]


En tu estime el món,
la terra i la gent d'on véns,
en tu estime.

I sé que en tu és més fort el dolor
i més intensa l'alegria de viure,
i és en tu on creix la vida
i és en tu on em sent lliure.

En tu estimaria fins i tot
l'absurda vinguda de la mort,
i és en tu que estime
les dolces dimensions del teu cos.

En tu estime el món,
la terra i la gent d'on véns,
en tu estime, en tu,
perquè a tu t'estime,
en tu, en tu, en tu...

/

Em ti amo o mundo,
a terra e a gente de onde vens,
em ti amo.

E sei que em ti é mais forte a dor
e mais intensa a alegria de viver,
e é em ti onde cresce a vida
e é em ti onde me sinto livre.

Em ti amaria até
a absurda chegada da morte,
e é em ti que amo
as doces dimensões do teu corpo.

Em ti amo o mundo,
a terra e a gente de onde vens,
em ti amo, em ti,
porque te amo a ti,
em ti, em ti, em ti...


Um ano antes tinha conhecido Annalisa Corti. Há aqui uma relação de causa-efeito e uma relação pessoal que dura até hoje e que até hoje se materializou em dezassete temas, recolhidos no disco Les Cançons d'amor (1999).
Raimon e Annalisa conheceram-se em Outubro de 1964. Era amiga de amigos e achou-se a recepcioná-la no aeroporto de Manises uma tarde livre do serviço militar. Passaram alguns dias a encontrar-se. Ambos estavam, nas palavras de Raimon, "meio embrulhados", mas mais ela que ele, porque Raimon mudaria rapidamente de rumo e poria o leme em direcção ao porto de Óstia. Annalisa nasceu em Óstia em plena II Guerra Mundial. Tinha então vinte e dois anos, tinha mesmo acabado concluir o curso de Direito e era militante do Partido Comunista Italiano.

Amor e ausência combinam poeticamente muito bem, e Raimon espremeria o binómio nos textos mencionados, enquanto reabilitava um género que era castigado e maltratado pela canção mais comercial. Amores e amizades tinham sido o leitmotiv da música popular e quando parecia mesmo que aquilo era um processo de degradação irreversível, entra Raimon no espaço da mais difícil intimidade lírica e devolve realmente o nome a cada coisa, para dizê-lo espriuanamente.

domingo, 7 de setembro de 2008

V - Caminant, amics (X)

Pi de la Serra, com intencionalidade compartilhada com o autor, quando a cantava mudava uma rima:

"una cançó tan pura
que pugui passar censura" /
"uma canção tão pura
que possa passar a censura".

E o público rebentava em aplausos. "Bon temps per a fer cançons" pertence ao disco "Triat i Garbellat", de 1971, com comentário de Joan Oliver e um trio bluesístico brilhante formado pelo próprio Quico, Manolo Elías e Toti Soler.

Raimon fez de facto bons amigos entre os músicos que tocaram com ele ou que fizeram arranjos das suas canções. Michel Portal, Manel Camp, Joan Figueres, Josep Pons e Antoni Ros Marbà são os melhores exemplos.
Que fique para a história deste género da canção, que dois dos melhores directores de orquestra, os maestros Antoni Ros Marbà e [Josep] Pons, figuras maiores quando se fala nas orquestras sinfónicas Real Filharmonia de Galícia e Nacional de Espanha, que deixaram de tocar piano há muitos anos (quando o substituíram por um instrumento mais leve como a batuta, que, na verdade, traz mais sonoridade...) tocaram piano nos trinta anos de "Al Vent" para acompanhar Raimon e fizeram-no em disco. Naquele acontecimento que requer várias menções, Pons toca "Veles e vents" e Ros Marbà "Cançó del pas de la tarda", com poema de [Salvador] Espriu.

sábado, 6 de setembro de 2008

V - Caminant, amics (IX)

Pi de la Serra e Ovidi Montllor partilharam com Raimon muitos recitais e com o primeiro, sobretudo, travou uma grande amizade, que se materializou noutros aspectos para lá de partilhar muitos cartazes: Raimon escreveu o prólogo do livro de canções de Quico e a letra de um tema, "Bon temps per a fer cançons", assinada com o pseudónimo "Ramon Xiquet". É um facto invulgar que Raimon escreva para outro, o que acrescenta valor ao texto. Fê-la assim, sob a epígrafe "Letra escrita, à maneira de Pi de la Serra, no dia 25 de Janeiro de 1969".


[A canção é de uma simplicidade de génio! Uma nota em relação ao idioma catalão, pautado por muitos monossílabos e - como já tiveram oportunidade de ouvir - uma sonoridade muito portuguesa. Menciono isto - em jeito de regresso às lides, para não entrar logo a quente - porque a tradução pode ser necessária aqui ou ali. Virá após a letra original, então, para tirar uma ou outra dúvida com que fiquem. Como não podia deixar de ser, o refrão (ou espécie de...) é a melhor demonstração das possibilidades da língua, dos monossílabos e - neste caso - da comunicação da mensagem escondida. ]


Francesc Pi de la Serra - Triat i Garbellat


[A 17ª canção de Raimon na caixa de música, cantada e interpretada portanto por Pi de la Serra, "Bon temps per a fer cançons", é a original, extraída do excelente álbum Triat i Garbellat, de 1971]


Sembla que és ara bon temps
per escriure una cançó
que parlarà dels dos,
que parlarà de molts.
Una cançó que ens diga
que avui la pluja és antiga,
una cançó d'amor
- és de mal gust el dolor.
Una cançó tan pura
que pugui passar per dura.

La cançó us la vaig a dir
sense disparar cap tir.
Avui el cel és molt gris,
bon dia per a fer-se el trist.

Plou poc, però pel poc que plou, plou prou.

La ràdio diu: demà sol,
i quan ella ho diu, fa sol.
La gent va al seu treball,
sols arribar els ve un badall.
Qui pot fa la viu-viu
com a mínim fins a l'estiu.

Bon temps per a fer cançons
que ens parlin de les passions,
de les passions que desvetlla
un lluent cul de botell.
I perquè no m'avorriu
callaré sens dir ni piu,
com a mínim fins a l'estiu.

Plou poc, però pel poc que plou, plou prou...


/


Parece que este é um tempo bom
para escrever uma canção

que falará dos dois,

que falará de muitos.

Uma canção que nos diga
que hoje a chuva é antiga,

uma canção de amor

- a dor
é de mau gosto.
Uma canção tão pura

que possa passar por dura.

A canção vou dizer
sem disparar qualquer tiro.

Hoje o céu está muito cinzento,

bom dia para ficar triste.

Chove pouco, mas para o pouco que chove, chove demais.


A rádio diz: amanhã sol,

e se ela o diz, há sol.
A gente vai para o seu trabalho,

só o chegar já enche.

O que pode vai vivendo

pelo menos até ao Verão.


Bom tempo para escrever canções
que nos falem de paixões,

das paixões que desperta

o cu brilhante da garrafa.

E para que não vos aborreça

vou me calar sem dar um pio,

pelo menos até ao Verão.

Chove pouco, mas para o pouco que chove, chove demais...

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Recital de Madrid - Reedição

Olá, amigos.

Marcamos o regresso às lides com a notícia de que o disco do mítico "Recital de Madrid" (editado originalmente em 1976, pela Movieplay) foi recentemente reeditado (ou seja, neste ano de 2008). A reedição anterior datava de 2005, realizada, tal como a presente, pela Fonomusic, actual detentora do catálogo daquele importante selo.

A única diferença parece ser o formato da embalagem, que é um digipak, bem mais engraçado e apelativo. Segue a tendência de reedições que a Fonomusic tem vindo a realizar. Entre outros títulos já disponíveis contam-se a edição do também mítico concerto de Lluís Llach, "Gener 1976", o segundo álbum de Amancio Prada, "Rosalia de Castro", o primeiro e único álbum de Daniel Vega, "La noche que precede la batalla", "Ahí ven o Maio", do galego Luís Emílio Batallán, o Lp mais vendido em Espanha no ano de 1970, "Silencio", de Adolfo Celdrán, ou as reedições de Labordeta incluídas na caixa da obra quase completa "Cantar y No Callar".

Tal como a nossa equipa "Do Tempo do Vinil" vai fazendo, a Fonomusic não pára de nos dar motivos de interesse. Para manter a memória bem viva!

E com esta pequena informação antecipamos o regresso à biografia de um dos cantores mais importantes de todos os tempos: Raimon.
A seguir.

domingo, 4 de maio de 2008

V - Caminant, amics (VIII)

Raimon tem também um tema dedicado a Joan Miró, com uma reiteração da expressão muito intencionada d"um vermelho inflamado" sobre um ostinato de guitarra. Apresentou-os, no ano de 1964, o jornalista Alberto Oliveras no restaurante Barcelonne de Paris, que além de oferecer um comer tipicamente espanhol, oferecia também flamenco para os turistas. Depois de jantar, Raimon agarrou na guitarra e cantou-lhe um par de canções. Um mês depois, Miró enviou-lhe uma litografia dedicada e propunha fazerem algo juntos; Raimon pensou na capa das Cançons de la roda del temps.

Apesar da diferença de idades - comenta o cantor -, o contacto com Miró seria permanente, não sei se chamar-lhe de amizade. Fez-me uma capa para outro disco, publicado no Japão, enviou-me uma litografia belíssima a Xátiva, falávamos muito, nem sempre, mas sempre que nos víamos. Tenho por ele uma grande admiração.

No mundo real, no que parece mais fácil fazer amigos, é muitas vezes o mais difícil. De qualquer forma, Raimon congregou energias positivas em toda a parte na comemoração dos trinta anos de "Al vent"; o uruguaio Daniel Viglietti, autor de "A desalambrar", um dos hinos universais das ideias progressistas, disse-o: "Isto é uma família". Deste lugar conservou Raimon muito próxima, na lonjura transoceânica, a amizade de Pete Seeger, um dos pais da canção folk mais comprometidos e que popularizou as canções de luta dos republicanos na Guerra Civil espanhola - tinha-as recuperado García Lorca, mas com letras revolucionárias -, que ele conheceu através da Brigada Lincoln de voluntários norte-americanos contra o fascismo.

Conheci o Pete - lembra Raimon - no ano 1970, nos Estados Unidos, mas já tinha ouvido discos dele, claro. Interessava-me muitíssimo a folk-song que se tinha desenvolvido a partir de Woody Guthrie, muito amigo de Pete. Tive a sorte de cantar a seu lado e quando pude trouxe-o a cantar a Espanha. Veio a minha casa. Proibiram-no de cantar em Barcelona, com um enorme destacamento de polícias, mas pôde cantar em Terrassa, em Sevilha e Donostia.
A amizade com Pete está viva hoje em dia, telefonamos um ao outro, e quando um ou outro viaja estamos juntos e falamos muito. Para mim, Pete Seeger é um exemplo, não do ponto de vista estético, porque ele é, digamos, muito norte-americano, e as suas coordenadas artísticas são muito diferentes das minhas. Mas tenho-o como exemplo de como usar a canção e de estar nela com uma dignidade enorme.

Menos longe que Seeger, encontramos o basco Mikel Laboa, com o qual mantém uma relação enriquecida também pela admiração mútua. Raimon não esquece a anedota simples de um restaurante no Monte Igeldo, sobre Donostia, ao qual Mikel tinha levado Raimon para comer umas fantásticas amêijoas, que muito o entusiasmam... Mas naquele dia tinham acabado! Mikel saiu da mesa, "ya vengo", foi à peixaria e regressou com as amêijoas.

domingo, 13 de abril de 2008

V - Caminant, amics (VII)

Um outro artista amigo, além de Alfaro, para quem Raimon compôs uma canção, é o pintor Joan-Pere Viladecans. Joan-Pere Viladecans e Raimon conheceram-se no ano de 1969, com Salvador Espriu a ligá-los. Viladecans fez a sua primeira exposição, na antiga Sala Gaspar, como desenhos sobre textos das "Cançons de la roda del temps". Depois, Viladecans acabaria por fazer capas de livros de Espriu e unia-os uma muito forte amizade. Espriu considerava Raimon e Viladecans de alguma forma como os seus "filhos espirituais". Raimon cantou assim Viladecans:


[A 16ª canção de Raimon na caixa de música, "Com una mà",
é a versão que podemos encontrar no terceiro disco da Integral de 2000]


Com una mà,
la vida estesa
al teu davant.
A tu es lliurava
sense malícia. /
Como uma mão,
a vida estendida
à tua frente.
A ti se rendia
sem maldade.

Tot aquell temps
t'havia fet
com una mà
la vida estesa. /
Todo aquele tempo
te tinha feito
como uma mão
a vida estendida.

Et capbussaves
de ple, turgent
enmig dels altres,
i xop de món
et veies viu. /
Mergulhavas
fundo, inchado
no meio dos outros
e empapado do mundo
te vias vivo.


Vint anys de temps,
que són no res
-diuen els savis-,
i aquella mà
anà tancant-se
molt lentament
però obstinada. /
Vinte anos de tempo,
que não são nada
-dizem os sábios-,
e aquela mão
irá fechando-se
muito lentamente
mas obstinada.

Retruny ben fort
allò que abans
en deien ànima,
creure no vol
el que el teu cos
avui constata,
exasperada
i aïrada
no es resigna;
espera encara
l'esclat potent
d'aquesta vida.
Segura està. /
Retumba forte
o que antes
chamavam alma,
crer não quer
o que o teu corpo
hoje constata,
exasperada
e desgarrada
não se resigna;
aguarda ainda
a luz potente
desta vida.
Firme está.



"No és Possible el Que Visc" (Lp 1974, BASF), de Pi de la Serra
Capa da autoria de Viladecans.

V - Caminant, amics (VI)

Com os anos, o panorama muda, as caminhadas sedentarizam-se e as noites ruem, mas a ideia informadora da amizade sobrevive e fortalece-se. Na paisagem quotidiana de Raimon em Barcelona há o político Rafael Ribó, o jornalista Enric Sopena e o pintor Joan-Pere Viladecans, entre outros. Este seria um primeiro círculo, já que naturalmente Raimon conhece muita gente e há muitos pontos álgidos de ligação momentânea, mas que pelas circunstâncias não chegam a sedimentar-se. As suas canções ilustram-nos estes episódios. Em "No el coneixia de res" evoca uma estadia intensa com um líder sindical. O anonimato de "A un amic d'Euskadi", datada de 1968, ano em que a ETA perde o seu primeiro militante e executa o polícia torturador mais odiado, indica que poderosas razões de clandestinidade fazem enfraquecer aquela relação. Josep Pla, à distância ideológica mas a partir de um grande respeito mútuo, também acabaria por ser amigo de Raimon se o espaço e o tempo o houvessem permitido. Apesar disso, Raimon guarda boas recordações de Pla e lê-o e relê-o.

Ribó, professor da Faculdade de Ciências Económicas, autor da primeira tese doutoral defendida em Catalão desde 1939, seria secretário-geral do PSUC, deputado e, posteriormente, com a chegada da Esquerda à Generalitat, no ano de 2004, Síndic de Greuges [pessoa nomeada pelo Parlamento da Catalunha para a defesa das liberdades dos cidadãos]. A presença de Ribó na direcção comunista levaria Annalisa a militar durante uns tempos na comissão de cultura, onde se via que Manuel Vázquez Montalbán mandava. Mas foi mais rápida a sua saída que a entrada. Os partidos políticos são intrinsecamente necessários à democracia, mas os seus esquemas de funcionamento são tão obsoletos que, às vezes, não passam de reuniões de vão de escada [espero ter traduzido bem esta passagem...] ; talvez a chama dos movimentos sociais, em torno da altermundialização, os enferruje.

Fosse como fosse, Raimon, que se molhou de política mas soube manter-se seco de políticos, quis evitar que no seu recital comemorativo dos trinta anos de "Al vent" houvesse autoridades nas primeiras filas, que reservou para os amigos. Quando Ribó chegou aos lugares reservados, disseram-lhe não o estavam para políticos, mas para os amigos. Ribó, tranquilo, disse: "Venho como amigo". Passou ele... E depois todos os outros, não haveria discriminações.
Sopena é um dos grandes jornalistas catalães; realizou uma tarefa activa na ajuda à oposição antifranquista e tem a honra, para a história do jornalismo catalão, de ter estado detido para poder dar a exclusiva mais importante da luta antifranquista: a constituição da Assembleia da Catalunha, a 7 de Novembro de 1971. Sopena, depois de ter exercido cargos directivos em diversos meios, na imprensa, na rádio e televisão, pratica com muito bom critério o jornalismo de opinião.

segunda-feira, 17 de março de 2008

V - Caminant, amics (V)

A primeira canção personalizada para um amigo dedica-a a Andreu Alfaro. Alfaro é um dos escultores mais distinguidos que mais escola criaram no panorama espanhol; a sua obra está em espaços e museus de todo o lado e o seu Catalan power tornou-se um símbolo material da esquerda nacional. A amizade com Raimon é também antiga, enraizada e sólida. Alfaro, que vive em Valência, vai a casa de Raimon quando visita Barcelona. Um desenho de sua autoria, feito de um só traço como esboço de uma escultura, de Raimon à guitarra, servirá para ilustrar as suas primeiras convocatórias, legais e clandestinas, de impressão sofisticada e policopiada (...), que respondiam por "Raimon, la veu d´un poble", o título da peça escultórica.
No ano de 1978, Raimon escreve a canção para Alfaro, "Andreu, amic". A paisagem valenciana, imagens muito precisas produto de ter reflectido muito na arte da escultura, e o decassílabo inspirado en Ausiàs:

[A versão de "Andreu, amic" que podemos ouvir, é, não a original, gravada em 79, mas a de 1981. Foi incluída na primeira integral. É a 15ª canção na caixa de música.]

Andreu, amic, torsimany de metalls
d'on ha vingut la força i la vida
que retrobem en la teua escultura. /
Andreu, amigo, intérprete de metais
donde veio a força e a vida
que descobrimos na tua escultura.

Dels ponts del riu i de les pedres velles,
dels clars matins, de la llum dels baladres,
dels teus dos peus de passejades dòcils. /
Das pontes do rio e das pedras velhas,
das manhãs claras, da luz dos loendros,
dos teus dois pés de passadas dóceis.

Carrers estrets i espais poc metafísics,
tot l'entrellat d'una ciutat difícil,
indiferent i secularment puta. /
Ruas estreitas e espaços pouco metafísicos,
todo o emaranhado de uma cidade difícil,
indiferente e secularmente puta.

Del llom del gos la majestat domèstica,
l'angle feroç de vertical segura,
essencials virginitats remotes. /
Do lombo do cão a majestosidade doméstica,
o ângulo feroz de vertical segura,
essenciais virgindades remotas.

Andreu, amic, torsimany de metalls,
eròtic cast de fusta ben antiga,
arribes tu on la paraula es trenca. /
Andreu, amigo, intérprete de metais
erótico casto de tronco bem antigo,
chegas tu aonde a palavra se cala.

De ferro vell i de mesura insigne
-germans de crit- t'he fet aquest poema,
Andreu, amic, torsimany de metalls. /
De ferro velho e de medida insigne
-irmãos de grito- fiz-te este poema,
Andreu, amic, intérprete de metais.



Entre la nota i el so, Lp de 84
Capa com desenho de Andreu Alfaro

domingo, 16 de março de 2008

V - Caminant, amics (IV)

Raimon valoriza muito a amizade e cultiva-a, como o demonstra o facto de que no seu círculo próximo surjam ainda companheiros de brincadeiras da infância e malandrices da juventude, como Joan i Toerregrossa; outra coisa é que quando a vida se desenvolve as mudanças vêm e determinadas proximidades tornam-se longínquas por diversas razões, que podem ir de simples mudanças de residência até às mais vis dissidências. O peso que outorga Raimon à amizade fica patente em temas como a "Cançon de la mare", na qual os amigos figuram entre os bens mais estimados quando Raimon, para levar avante o seu trabalho, se vê obrigado a partir para Barcelona, numa época en que quatrocentos quilómetros eram uma distância substancial. Depois, en "Molt lluny", onde evoca as primeiras conversas importantes com os companheiros de Xátiva. No memorável recital dos trinta anos de "Al vent", depois desta canção leitmotiv, a primeira que Raimon canta é "Molt lluny". São de "Molt lluny" as palavras que encabeçam este capítulo:

[É com esta canção que ficamos hoje. Em escuta, a versão que gravou pela primeira vez. Está no disco "A Víctor Jara", de 74. É a 14ª canção na caixa de música. Traduzi-a apenas no fim do texto original, sem intercalar idiomas para uma mais fácil leitura e audição.]

A Víctor Jara, Lp Movieplay, 1974


Molt lluny,
en les butxaques d'uns pantalons
vells
que ma mare guardava
-ma mare ho guarda tot-,
he trobat
les nits que ens passàvem
caminant, amics,
pels carrers de Xàtiva.
Parlavem de tot
i del bé i del mal.
Amb poques coses clares:
la incertesa del futur,
l'avidesa d'uns infants.
Les caminades nits d'estiu
les tinc avui al davant.
Amunt i avall...
/
Muito longe,
nos bolsos dumas calças velhas
que a minha mãe guardava
- a minha mãe guarda tudo -
encontrei as noites que passávamos
a caminhar, amigos,
pelas ruas de Xátiva.
Falávamos de tudo,
e do bem e do mal.
Com poucas coisas claras:
a incerteza do futuro,
a avidez de crianças.
As caminhadas noites de Verão
tenho-as hoje pela frente.
Acima e abaixo...

quinta-feira, 6 de março de 2008

V - Caminant, amics (III)

Inici de cântic é um poema bem acabado no qual o autor concentra, na plenitude literária formal, dois dos seus eixos temáticos: a salvação de uma língua que se pensava que não sobreviveria à agressão franquista, e a fé no povo, que era, no seu entender, a forma plural da espécie Homem, medida tangível de todas as coisas. O poeta ficou tão contente pela versão musicada de Inici de Cântic, de facto uma canção poderosa e emblemática, que acabou por alterar a dedicatória: "A Raimon, com o meu agradecido aplauso".

Depois do êxito, Espriu tentou Raimon para que musicasse poemas que ele queria, especialmente os do seu último ciclo, Per a la bona gent, coisa que nem sempre Raimon fez, porque casar letra e música apresenta muitas vezes mais limitações que o casamento canónico. A segunda parte de Per a la bona gent, intitulada Intencions, leva este repto: "Para que Raimon cante intencionalmente, talvez um dia, todos estes versos". Até agora, musicou dois dos dez.

Tema definitivamente espinhoso para ser cantado, por causa das barreiras entre Catalão e Caló, a língua mestiça dos ciganos que Espriu tanto estimava, é Venda i passió de la Melera, que leu para Raimon com entusiasmo. Raimon não o musicou, mas fê-lo com a longa salmodia He Mirat Aquesta Terra, poema XXIV do Llibre de la Sinera, que se juntou à lista dos preferidos do escritor, segundo fez constar no texto incluído na primeira versão da obra completa de Raimon, no ano de 1981. Na Nova Integral. Edició 2000, Raimon conta com vinte e uma canções com textos de Salvador Espriu. O poeta dizia assim do cantor em meados dos anos setenta:

Raimon é um homem que estimo profundamente e por quem sinto uma grande admiração. Penso que no complexo mundo da Cançó é um caso absolutamente único e excepcional. Raimon criou uma obra pessoal muito considerável e dedicou muita atenção à minha poesia, porque, como ele disse, a recolha da minha obra completa é o seu livro de cabeceira. Leu-me tão bem, e leu-me sob as diversas matizes da minha poesia, que, no meu entender, as suas melhores canções, diria mesmo o complexo, não a letra ou a música, foram criadas através dos textos de Ausiàs March, que é o poeta número um da literatura catalã, e através das minhas canções, sobretudo o elepê que dedicou às Cançons de la Roda del Temps, que é simplesmente sensacional.

Raimon contactaria com Espriu até ao fim. Ficou-lhes um projecto bonito por fazer. Em Dezembro de 1984, apenas um par de meses antes da morte do poeta, falavam de um espectáculo Espriu-Raimon, que consistiria em interpretar todas as canções conjuntamente, com uma orquestra sólida e os arranjos de Antoni Ros Marbà, se o maestro pudesse, dirigida por ele mesmo, e uns textos introdutórios a cada uma das canções que Espriu escreveria com esta finalidade, coisa com a qual, Raimon, para lá de cantar, faria de actor, recitando os monólogos. Não houve tempo, a temida Dama à qual Espriu tinha dedicado tanta poesia, precipitou a sua partida.

terça-feira, 4 de março de 2008

V - Caminant, amics (II)

Raimon conheceu Salvador Espriu pelos fins do Verão de 1963. Espriu era um poeta muito reconhecido, isso que se dizia, marimbando-se, um figurão e, como a Raimon lhe fazia espécie abordá-lo directamente, pediu a Joan Fuster que lhe fizesse uma carta de apresentação e assim, uma vez lida, Raimon ligar-lhe-ia para se encontrarem. Foi assim e quando Raimon lhe telefonou deparou-se com uma surpresa: "Admiro-o profundamente", respondeu a nasalada voz do poeta. Raimon apenas tinha gravad um pequeno disco e ainda não o tinha lançado na popularidade o Festival de la Cançó del Mediterrani, mas Espriu, homem de pouca vida na rua mas - podemos dizê-lo - com as antenas viradas para todos os lados, já tinha ouvido aquele Ep e intuia que ali havia material de qualidade.

Espriu tratava de temas que eu compartia, mas ele expressava-os muito melhor do que eu alguma vez pudera fazer - explica Raimon -. Ele era mais conhecido pela poesia social, pela La Pell de Brau, mas a mim o que me interessava era a poesia mais íntima, que alguns consideram a mais fechada ou hermética. Era o lirismo contido de El Caminant i el Mur, ao qual pertencem as Cançons de la roda del temps, que são as primeiras que musiquei. Espriu era um grande poeta.

Ficámos em casa de Espriu, que então ficava no magnífico edifício de Domènech i Montaner, hoje Hotel Casa Fuster, onde o Passeig de Gràcia passa a ser Gran de Gràcia. Falámos desde as oito da noite até às 4 da manhã. Espriu, a austeridade monacal em pessoa, não jantava; Raimon tampouco o fez, mas aceitou um bom conhaque. Temas de conversa, sobretudo poesia, gostos partilhados, como agora [T.S.] Eliot, [Ezra] Pound, [Luis] Cernuda, [Nicolás] Guillén.

Quando o clima já estava criado e foi preciso, Raimon cantou-lhe "Cançó del Capvespre", único poema que tinha musicado até àquele momento. Raimon sabia que La Pell de Brau se tinha tornado num best seller, em género minoritário e língua minoritária, um mérito enorme, mas achava que não era o melhor da obra de Espriu. Mas isso seria aprofundado e partiria para as Cançons de la roda del temps, que fazem parte do livro El Caminant i el Mur, que é lírica pura e dura, e que Raimon interpretaria depois, já com o nihil obstat do autor. Espriu ficou muito contente pela opção pelo mais difícil e aparentemente menos comercial... Tão pouco comercial que, apesar de Raimon ter conseguido um desenho de Joan Miró para a capa [do disco], Edigsa adiou a edição de todo o ciclo para o concentrar num Lp, porque pensavam que nunca venderia. Pois, enganaram-se: as pessoas acabam sempre por se surpreender com as previsões que fazem.

Espriu ficou encantado com as Cançons de la roda del temps e agradaram-lhe tanto que pediu a Raimon que lhe escrevesse um preâmbulo na edição francesa de La Pell de Brau, um desafio, e até que pusesse música a um poema que tinha escrito em 1964 em homenagem a Joan Salvat-Papasseit, "Inici de Càntic", na comemoração do quadragésimo aniversário da sua morte. Espriu, que era muito polido, pôs-lhe uma dedicatória: "Para que Raimon o cante". Um ano depois, Raimon cantava-o, com o seu arranque mais jondo: um "Ai" que junta dois compassos, que é uma das configurações harmónicas mais complexas de toda a obra raimoniana, sete bemóis na armadura, a estranha tonalidade de Dó bemol maior..., que convida a ser interpretada com um transporte subtil para fazer desaparecer a desafinação das mudanças... mas esta é uma guerra para criptógrafos à qual o leitor não qualquer obrigação de ir - como a nenhuma, obviamente.

Edição francesa de Cançons de la Roda del Temps (CBS, 1967)

[A canção para hoje é então a magnífica Inici de Càntic, originalmente incluída no disco com a capa de Miró (1966), aqui reproduzida. A versão que podemos ouvir, a 13ª canção na caixa de música, é a regravação que fez para a primeira integral, de 1981. Se bem que esta não tenha a introdução supracitada, escolhi-a porque penso que os arranjos orquestrais transmitem melhor a tensão e a intenção do poema. Uma última nota para referir que me abstenho de o traduzir. Pelo menos por agora].

Ara digueu: "La ginesta floreix,
arreu als camps hi ha vermell de roselles.
Amb nova falç comencem a segar
el blat madur i amb ell, les males herbes."
Ah, joves llavis desclosos després
de la foscor, si sabíeu com l'alba
ens ha trigat, com és llarg d'esperar
un alçament de llum en la tenebra!
Però hem viscut per salvar-vos els mots,
per retornar-vos el nom de cada cosa,
perquè seguíssiu el recte camí
d'accés al ple domini de la terra.
Vàrem mirar ben al lluny del desert,
davallàvem al fons del nostre somni.
Cisternes seques esdevenen cims
pujats per esglaons de lentes hores.
Ara digueu: "Nosaltes escoltem
les veus del vent per l'alta mar d'espigues".
Ara digueu: "
Ens mantindrem fidels
per sempre més al servei d'aquest poble
".

domingo, 2 de março de 2008

V - Caminant, amics (I)

Manuel Vázquez Montalbán morreu em Bangkok, cenário de um dos seus romances, no dia 18 de Outubro de 2003. Vázquez Montalbán era um dos grandes amigos de Raimon. Vázquez e Anna Sallés, a sua esposa, historiadora, e Raimon e Annalisa viam-se com frequência, tinham jantares juntos, celabrações familiares - aniversários, o doutoramento de Anna, os prémios literários de Manolo... -, viajavam. Sobretudo, falavam, ouviam-se, inquietavam-se e compartilhavam muitas coisas; compartir, este verbo faz com que a própria vida se encare em comum. Raimon e Vázquez Montalbán compartilhavam ideias, maneiras de ver a vida, o gosto pela literatura e a gastronomia. E pela música popular, que Vázquez conhecia ao ponto de ter escrito alguns livros sobre o tema. Bem cedo se interessaria pelo fenómeno do aggiornamento da nossa música popular, e dissertá-lo-ia numa Antologia de la Nova Cançó Catalana. Depois tornou-se patente a sua afeição pela copla e outras variantes da sua língua materna ouvidas na infância e, de facto, escreve o romance com o qual o detective Pepe Carvalho salta para a fama a partir de um bolero cantado por Concha Piquer, "Tatuaje". Tudo isto aproxima-o de Serrat, a quem biografa.
Raimon canta na memória que lhe foi feita na Universidade de Barcelona, em 21 de Outubro de 2003. A Raimon, sempre irónico e simpático, muda-se-lhe a face quando lembra os seus amigos já falecidos, ausências irreversíveis, um vazio que nunca será preenchido. Vázquez Montalbán (1939-2003) foi o último; antes, Joan Fuster (1922-1992), Enric Gispert (1925-1990), Salvador Espriu (1913-1985).

Falou-se muito de Joan Fuster, porque estávamos nos inícios de Raimon e, naqueles tempos, o escritor de Sueca foi uma personagem-chave na sua passagem da História à Canção. Fuster era um multifacetado da cultura, um intelectual completo, um homem do Renascimento, lúcido e lúdico. Desde os seus artigos até à Cátedra de Literatura que ocupou os últimos anos da sua vida, passando pela sua diversa bibliografia, Fuster foi um dos cérebros mais influentes do nosso século XX. Sobre Raimon escreveu bastante, a começar pelo livro que já mencionámos, uma primeira edição com capa, e também fotos no interior, de Oriol Maspons, o número 16 da colecção "Biografies Populars", da Editora Alcides: Raimon era o quarto músico, antecedido por Josep-Anselm Clavé, Victòria dels Àngels e Raquel Meller.
Esta breve lista dá-nos a ideia da popularidade atingida por Raimon, comparável ao fundador dos coros com maior implantação no país, à soprano catalã de voz mais esquisita, à "cupletista" [de cuplet) de maior renome e caché, que tornou tão famosa "La Violetera" que até Charlie Chaplin a lembrou e tem uma estátua no Paral.lel [estação do metro de Barcelona]. Com uma diferença: Clavé e Meller eram história, Victòria dels Àngels tinha acabado de triunfar na inexpugnável fortaleza wagneriana de Beirute, na maturidade vocal, e Raimon era um moço de vinte e quatro anos, com apenas uma dúzia de canções como repertório.
Fuster também escreveu um dos textos de apresentação de Raimon. Totes les Cançons, incluído na reedição do livro de Fuster feita pelas Edicions de la Magrana, no ano de 1988. No fim desse comentário na primeira recolha da sua obra, em discos de vinil, Raimon escreve no diário Les Hores Guanyades este entranhável parágrafo sobre Fuster, datado de 20 de Abril de 1981, no qual entrevemos qual é o seu maior conceito de amizade:

Jantámos com Fuster, em Sueca. Diz-nos que já leva vinte folhas para a apresentação dos vinte anos de Raimon. Assegura-nos que praticamente deixou de escrever artigos para se concentrar na escrita da apresentação. Que dias maravilhosos! A Annalisa e eu sentimo-nos lisonjeados. Se os amigos te estimam e to demonstram, já podem vir os inimigos, que sejam bem-vindos.

De Gispert também se falou. Esperou-o à sua chegada a Barcelona e foi a sombra criativa em todas as suas gravações; Raimon deixou o seu nome nos agradecimentos em tantos e tantos discos, em alguns dos quais interveio muito nos arranjos, como agora na emblemtática "Veles i Vents". Gispert sabia muito de música, mas de música sabiam poucos, para dizê-lo a jogar com as palavras. Falava baixo e apenas quando se lhe pedia. Além dos estudos musicais e de dirigir a grupo Ars Musicae, tinha cursado Direito, mas vivia de uma loja onde torrava café e vendia frutas secas, no bairro da Ribera, que por fim o tornaria mestre da capela de Santa Maria del Mar. Gispert seria director do coro, investigador de música antiga, produtor discográfico e crítico, um grande crítico, o melhor da sua geração, em que competia com inlustres compositores.
Tinha estudado muito o Raimon músico, facto do qual deixou provas no texto que também acompanhava a caixa Raimon. Totes les Cançons, e um tratado sobre o tema foi a última coisa que deixou por fazer. Eram dias de estudo, um seminário sobre a obra de Raimon, organizadas pelo CIC de Terrassa, no âmbito dos cinquenta anos do cantor, na primeira semana de Dezembro de 1990. Gispert, já muito doente, morreria no dia 27 desse mesmo mês.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XVI)

"Al vent" representa uma peça importante na cultura catalã, e por arrastamento noutras culturas peninsulares que se reclamavam da Nova Canção, em geral, e de Raimon, em particular, para dar seguimento a processos creativos neste âmbito. O trigésimo aniversário do lançamento do disco "Al vent" daria a medida certa do Raimon que começou a construir-se a partir daquele tema.

O dia de San Jordi de 1993, na Barcelona fashion pós-olímpica, Raimon continuava a ser muito mais que actualidade: à sua volta organizava-se um dos acontecimentos culturais de maior magnitude em torno da música. No Palau Sant Jordi, sede símbolo dos Jogos, criado por Arata Isozaki, Raimon juntava 18 mil pessoas na plateia e a mais brilhante pléiade de cantores e músicos de qualidade jamais vista num palco. Daniel Viglietti, Joan Manuel Serrat, Paco Ibañez, Luís Cília, Ovidi Montllor, Pete Seeger, Quico Pi de la Serra, Mikel Laboa, Warabiza, Michel Portal, Josep Pons, Antoni Ros Marbà, o Coro Sant Jordi, dirigido por Oriol Martorell, e a banda La Lira Ampostina, que recuperaria o Raimon flautista.

Como documentos vivos deste mega-recital ficaram um vídeo e duas canções do concerto, que estão incluídos no décimo Cd da caixa intitulada Nova Integral. Edició 2000. Os dois temas são "Oh, desig de cançons", que se estreava, e "Com un puny".

O grito da Vespa tinha conseguido o que nenhum outro cantor havia alcançado no mundo mediático. Transmissão em directo pela TV3 na Catalunha e em diferido pela TVE para toda a Espanha. Notícia em todos os diários de Barcelona e, o que é mais significativo, comentários editoriais; estes espaços estão reservados quase exclusivamente para a política, temas internacionais, economia e sociedade. Um cantor merecedor de editoriais no La Vanguardia e no El País foi, efectivamente, um facto jornalístico insólito.

Mas para sintetizar a trajectória de "Al vent" - e a sua circunstância - que se percorre neste capítulo, a peça idónea é o artigo que escreveu no El País (25 de Abril de 1993) Manuel Vázquez Montalbán, amigo íntimo de Raimon. Com ele encerramos este capítulo e começaremos o próximo:

Por um montento consegui sair de mim, da minha presença no Palau Sant Jordi, e vi-me com Salvador Clotas, Martín Capdevilla e Ferran Fullà, os quatro, na escula da prisão de Lérida em 1963, à volta de um pequeno disco em cuja capa aparecia um moço da nossa idade com uma guitarra debaixo do braço, o anúncio de canções como "Al vent" e uma apresentação a cargo de Joan Fuster. Nós, os valencianos, tínhamos por companhia na cela, ao pé de Sweezy, Baran, A estrutura da lírica moderna, Álgebra moderna; cada louco, cada estudante com o seu tema. A voz de Raimon soou presa naquela escola-prisão, mas começou a elevar-se e alcançou para além dos barrotes o voo das andorinhas e a línha imaginária das terras do Segre. Ao acabar "Al vent" percebemos que tínhamos ouvido algo profundamente novo e as vibrações da poderosa voz do valencianismo prometiam partir os vidros da estação e os caixilhos de uma cultura ameaçada pelos inimigos exteriores e pelos amigos que às vezes a asfixiavam por excesso de protecção.

Contracapa de Al vent (1963),
com texto de apresentação de Joan Fuster

Tantas coisas começaram com "Al vent", e anteontem [dia 23 de Abril, dia do concerto] a canção de Raimon mostrou a sua vocação para a eternidade e fez-se novamente a voz do cantor, mas também se mostrou apta a japonesismos e para ser versionada pela a banda [filarmónica] valenciana. O jacobeo de "Al vent" tinha convocado peregrinos de todas as terras da canção e de todas as terras de Espanha. Houve quem trouxesse os seus filhos para que compreendessem de que precárias fontes se alimentava a esperança naqueles tempos em que estar "ao vento" ou "dizer não" te garantia um carimbo, obviamente secreto, de subversivo; mas o surpreendente do recital de Raimon e dos alegres moços companheiros da sua noite liga-se a uma sensação colectiva de que as palavras haverão de se libertar da insustentável leveza do saber e apostar pela descrição da desordem. A nostalgia que se escondeu levemente nos gaseados tectos do palácio catalão-japonês e a comunicação que se estabeleceu na sala capturava por sua vez a consciência, constatação crítica por todas as tentações que tentaram falsificar tantas origens para esconder o obstáculo das identidades.
Ali estava Raimon, no palco, a oxigenar tudo com a sua voz de furacão e o seu silêncio educado por meio de Espriu e Mompou e Serrat a recuperar canções de madrugada fugitivo de ida e volta do Poble Sec [lugar onde nasceu Serrat], fugitivos de ida e volta como todos os que tivemos pátrias de infâncias pequenas e erosionadas. Ali estava Quico a demonstar que tampouco o tempo passou para o "homem da rua", que continua com o seu traje cinzento à espera da ressurreição das almas e das carnes. E Paco, Paco Ibañez a chamar à ordem os políticos e a deixar os "cavalos a galopar" para que enterrassem no mar insuficiências e cansaços democráticos. E Viglietti, que nos lembrou o seu terceiro mundo, o nosso quarto mundo; ou Seeger, que nos ajudou a recuperar a memória de "Ay Manuela!" ou "Ay Carmela!"..., que eram a mesma derrotada, confiante em que as canções contassem a verdade da Vida e da História. Montllor: porque não canta Montllor se canta tão bem como sempre e melhor que antes desse sempre? E Cília, tão necessária a sua voz? Laboa, o musicador essencial.

Quando voltei da prisão de Lérida ao Palau Sant Jordi, não levava em mim o consolo da nostalgia, senão a impressão de que o acto a que assistimos não tinha nada que ver com uma reunião de ex-combatentes ou de ex-presos. Em muitos momentos foi uma reunião intrinsecamente subversiva, ainda que talvez a palavra "subversão" fosse um caligrama da grande reprodução de Miró, que, na retaguarda [um mural fazia de fundo] e à sua sublimada forma, sempre pontou a favor das coisas necessárias. Exacto. Foi um acto necessário de balanço e de "hasta aquí hemos llegado!".


[Encerramos aqui o IV capítulo com o fim deste concerto. A canção é mais que obviamente "Al vent". E que pena não poder dar-vos também a ouvir a original, a de 1963...]


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XV)

Em "Cançó de les mans", Raimon insiste na crítica da pobreza a que são maioritariamente condenados os assalariados. "Mans tan dures / dels que passen fam". E em defesa do direito à vida num país em que se aplicam ou aplicaram sentenças de morte ou se mata com a rapidez cruel da tortura e com a cruel lentidão da prisão: "Mans dels que maten, brutes; / mans fines que manen matar". Passara menos de um ano do fusilamento do dirigente comunista Julián Grimau; eram cinco e meia da manhã de 20 de Abril de 1963, e ainda com as cicatrizes por todo o corpo, consequência de terem-no lançado por uma janela para simular um suicídio que camuflasse as terríveis sessões de tormento.


[A canção de hoje, Cançó de les mans, a décima segunda na caixa de música, é uma das minhas preferidas. A versão que podemos ouvir é de 1968, incluída no disco simples cuja capa reproduzimos.]

De l'home mire
sempre les mans. /
Do homem olho
sempre as mãos.

Mans de xiquet, ben netes,
mans de xiquet que es faran grans.
Mans que en la nit busquen
allò que no troben mai. /
Mãos de miúdo, bem limpas,
Mãos de miúdo que se tornarão grandes.
Mãos que na noite procuram
o que nunca encontrarão.


Mans dels que maten, brutes;
mans fines que manen matar.
Mans tremoloses, eixutes,
mans tremoloses,
mans dels amants. /
Mãos dos que matam, sujas;
mãos sensíveis dos que mandam matar.
Mãos trémulas, secas,
mãos trémulas,
mãos dos amantes.


De l'home mire
sempre les mans. /
Do homem olho
sempre as mãos.

Mans tan dures
dels que passen fam.
Mans tan pures
de quan érem infants. /
Mãos tão duras
dos que passam fome.
Mãos tão puras
de quando éramos crianças.

De l'home mire
sempre les mans. /
Do homem olho
sempre as mãos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

IV - La Cara al Vent (XIV)

À crise da língua, da mesma forma, soma-se-lhe um elemento directamente político, como se notou no caso Serrat, o compromisso da esquerda, que é posterior a 1970. Emerge com certeza pelo que viu e pelas consequências de dar para trás ao regime, que o levam a Paris, onde conhece o dirigente socialista Francesc Vila-Abadal, um dos redactores dos quatro pontos programáticos da Assemblea de Catalunya, que estava exilado. O factor político reside nesta dualidade entre a reivindicação nacional e a social que é própria do catalanismo de esquerda ou da esquerda catalanista, mas não do catalanismo conservador, que era hegemónico na Edigsa, teledirigida por Espar. Assim, Raimon sai da Edigsa.

A correspondência entre Joan Fuster e Joaquim Maluquer descortina com propriedade a face oculta do caso. Numa carta assinada por Fuster a 13 de Setembro de 1967, pouco antes da ruptura de Raimon com a Edigsa, que também foi subscrita por Pi de la Serra, ele diz que o prémio que a editora dava iria, no ano de 1966, para Raimon pelo disco ao vivo no Olympia de Paris. Era mais que evidente, pelo seu valor artístico e pelo enorme impacto que teve na Nova Cançó. Mas não lho dariam porque era um disco "político" e não queriam ter problemas com o Ministério de Información y Turismo. Raimon, diz Fuster, chateou-se e com razão: "As ideias de Raimon sobre a burguesia não são, propriamente, aduladoras". Mais tarde, volta a criticar Edigsa - lemos que Maurici Serrahima também lhe pôs nódoas. Fá-lo a partir de uma divertida referência a Jordi Nadal, que tinha organizado a viagem académica de Raimon a Aix-de-Provence para melhorar os seus conhecimentos:

Jordi Nadal - diz Fuster - o que quer é "convertir" o moço de tenor em erudito. Agrada-me. Por outro lado, os burros da editora do disco estão a deixar passar a oportunidade de vender exemplares. E de que maneira!

A opção de cantar em Catalão é política, mas também de mercado e, portanto, tem consequências económicas. O esforço de compor é igual em qualquer língua, mas o mercado potencial básico do Catalão é exponencialmente menor que o Castelhano. Aqui há um compromisso político sério, portanto, e os que tentam pôr os catalães a cantar em Castelhano sabem que todos se recusarão. Dinheiro e popularidade são iscos saborosos.


Raimon grava, como se disse, o seu segundo Ep no mesmo ano de 63, como resposta à grande procura e às expectativas geradas pela sua entrada de cavalo siciliano no mundo que era então mais espectáculo que cultura. Grava "Se'n va anar" e a meio-inócua, meio-ingénua "Disset Anys", dando cobertura ou subterfúgio à "Cançó del Capvespre", que traz do beco o melhor poeta catalão comprometido com o país e a liberdade, e a "Diguem no". Esta canção terá sérias dificuldades para passar a censura e apenas chegará a disco e aos palcos com uma mudança de título, "Ahir" [Ontem], que não quer dizer absolutamente nada, e um par de substanciais alterações na letra. Reproduzimos a original e as mudanças a negrito:

Ara que som junts
diré el que tu i jo sabem
i que sovint oblidem:

Hem vist la por
ser llei per a tots.
Hem vist la sang
-que sols fa sang-
ser llei del món.

No,
jo dic no,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món.

Hem vist la fam
ser pa
dels treballadors (per a molts).
Hem vist tancats (com han fet)
a la presó (callar a molts)
homes plens de raó.

No,
jo dic no,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món.
No,
diguem no.
Nosaltres no som d'eixe món



Em 1964 sai o seu terceiro Ep, com "D'un temps, d'un país", "Cançó de les mans", "Perduts" e "Tot sol", e o primeiro Lp, uma antologia comentada pelo próprio Espriu e por José Luis López Aranguren, professor de Ética na Universidade Complutense de Madrid, da qual, anos depois, seria expulso por se manifestar contra o regime. "D'un temps, d'un país" e "Cançó de les mans" apostam forte. O professor Aranguren, intelectual de peso, escreve um texto belíssimo na contracapa daquele Lp. Onde diz o seguinte:

Eu diria que Raimon contém em si uma força capaz de mobilizar as adormecidas energias de uma grande parte da nossa juventude, precisamente porque pertence por inteiro a ela, e porque, podendo "comunicar" com ela, é exigente, sabe dizer "não" às injustiças, conhecer e rejeitar as mãos que matam e as que mandam matar; e porque procura no escuro e a gritar, moço perdido na noite da cidade moderna, uma nova salvação para todos. Em suma, porque desde o fundo de si próprio se projecta para onde se dirige o Homem.

Na primeira canção, Raimon contesta a doutrina de Primo de Rivera da "dialéctica de los puños y las pistolas", com o inequívoco "no creguem en les pistoles: / per a la vida s'ha fet l'home / i no per a la mort s'ha fet". "Não acreditamos nas armas", verdadeira exclamação em defesa do direito à vida, expressa-se em forma de grito, de ordem pura e dura num verso, só e livre. Na mesma canção desaprova "la misèria necessària, diuen / de tanta gent" e proclama que "no anirem al darrere / d'antics tambors", os mitos da história militar de Espanha que a ditadura propagandeava: Viriato, o Cid Campeador, o Gran Capitán, o general Moscardó e, claro, o generalísimo Franco.

["D'un temps, d'un país" é a canção nº 11 de Raimon na caixa de música. Canção emblemática, verdadeiro hino, que foi gravada em 64, no seu terceiro Ep. Mais tarde, já saído da Edigsa, voltou a gravá-la. Essa versão, de 1968, é a canção de hoje]


D'un temps que serà el nostre,
d'un país que mai no hem fet,
cante les esperances
i plore la poca fe. /
De um tempo que será o nosso
De um país que nunca fizemos
Canto as esperanças
E lamento a pouca fé.

No creguem en les pistoles:
per a la vida s'ha fet l'home
i no per a la mort s'ha fet. /
Não acreditamos nas pistolas:
Para a vida se fez o Homem
não se fez para a morte.


No creguem en la misèria,
la misèria necessària, diuen,
de tanta gent. /
Não acreditamos na miséria,
a miséria necessária, dizem,
de tanta gente.


D'un temps que ja és un poc nostre,
d'un país que ja anem fent,
cante les esperances
i plore la poca fe. /
De um tempo que já é um pouco nosso,
de um país que já estamos a construir
canto as esperanças
e lamento a pouca fé.


Lluny som de records inútils
i de velles passions,
no anirem al darrera
d'antics tambors. /
Longe estamos de memórias inúteis
e de paixões antigas,
Não iremos atrás
de antigos tambores.

D'un temps que ja és un poc nostre,
d'un país que ja anem fent,
cante les esperances
i plore la poca fe.

D'un temps que ja és un poc nostre,
d'un país que ja anem fent.