terça-feira, 25 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XIV)

Para lá do seu espaço na Via Laietana, havia um dossiê "Raimon" no Governo Civil de Barcelona, um maço de capa dura, e um outro no Serviço de Informação Militar, que era como se chamava então o corpo de espionagem. Um capitão general da IV Região Militar chega a fazer de Raimon motivo de preocupação na Sala de Bandeiras da cúpula do Exército.

Joaquín Nogueras, capitão general em Barcelona, distingue Raimon com esta carta endereçada ao governador civil, com data de 10 de Maio de 1972:


Exmo. Sr. Adjunto, para conhecimento de V.E., duas notas que recebo dos meus Serviços de Informação.
Não remeto outras referentes aos acontecimentos em torno do dia 1º de Maio, pese a abundância de bandeiras vermelhas com a foice e o martelo; profusão de gritos subversivos nos quais se atenta directamente contra o Chefe do Estado, etc., por considerar, não devo imiscuir-me nas funções próprias de V.E., nem muito menos julgar, que o endurecimento das acções subversivas registadas se deve à impotência das Forças de Ordem Pública, ou a uma actuação consciente e calculada, em função de directrizes recebidas.
No entanto, o conteúdo, e o claro significado, das duas Notas que se juntam não pode ser ocultado, nem deixado sem aclaração, aos Quadros Profissionais do Exército.
Os gritos "Viva Catalunha Indenpendente", e a atitude perfeitamente definida de 400 pessoas que atentam contra a unidade da Pátria, aproveitando um acto autorizado por este Governo Civil; a alusão concreta a organismos militares da Região, são factos que afectam directamente as Forças Armadas e, portanto, não posso, nem quero, manter-me passivamente à margem.
Por conseguinte peço a V.E., se achar por bem, que me informe, discretamente, das razões que levam a permitir a actuação do cantor Raymon (sic), mesmo sabendo que, sistematicamente, estas actuações são aproveitadas por elementos contrários à Unidade da Pátria. E então, se se adoptou alguma medida em relação ao dito cantor e se se efectuou alguma detenção de elementos organizados.
Por outro lado, considero de elevado interesse que me comunique se, com os meios policiais disponíveis de V.E., julga possível averiguar a origem e a organização distribuidora da propaganda subversiva intitulada Terrorismo e Direitos. Alerta! apreendida inicialmente no Hospital Clínico e na Faculdade de Medicina.
Tudo isto, com vista a eventuais acções que me veja obrigado a tomar em função e desde o ponto de vista da jurisdição da Justiça Militar.

Deus Guarde V.E. por muitos anos.
Barcelona, 10 de Maio de 1972.
O Capitão General, Joaquín Nogueras.


Perante uma pressão tão forte e evidente da máxima autoridade militar, o governador, Tomás Pelayo Ros, responde por carta que Raimon está proibido. Num novo ofício que chega à Brigada Social, onde Raimon está classificado, disse-se, como "Catalano-separatista" e as designações nominais dizem extactamente: Ramón Pelegero Sanchis, ou "Raimon".

O Governo Civil aguenta um par de anos a proibição absoluta, apenas furada por organizadores com imunidade, como a Igreja e a Universidade, e, havendo sorte, abre mão impondo três restrições importantes. Para poder cantar, Raimon tem de ser contratado por um empresário registado, disponibilizar os valores e certificados de ingressos bancários e consultar a Direcção Geral de Segurança, em Madrid.

Nestas situações tão precárias, Raimon atira-se de cabeça com o recital do Palau dels Esports. Pede a Oriol Regàs que seja o empresário de coarctada. Regàs, apesar de ter prestado diversas ajudas à oposição, é considerado pelas autoridades franquistas um frívolo proprietário de salas de jogo, o Bocaccio e o Maddox, e um restaurante de luxo, o Via Venero, que eles frequentam. Oriol Regàs tem apenas um antecedente por fechar tarde o Bocaccio e de nele ter pouca luz, facto que propicia comportamentos "lascivos". A autoridade deixa passar e o novo Governador Civil de Barcelona, Rodolfo Martín Villa, que é inteligente o suficiente para perceber que o certificado de óbito de Franco sê-lo-á também do seu regime político, quer ter um pé no futuro. Martín Villa é o dubitativo Hamlet. Não pode autorizá-lo para ficar bem com os que o nomearam, mas tem de fazê-lo porque ainda é jovem e ainda tem muita carreira política pela frente.

Autoriza-o, mas chama ao seu gabinete Raimon e Annalisa para intimidá-los e responsabilizá-los por tudo o que possa acontecer. A chamada é coerciva: "O governador diz que venham os dois". Annalisa pregunta: "Quando?". Respondem "Já". Raimon aguenta o sermão e diz-lhe que ele apenas pode ser responsabilizado pelas canções, e por nada mais. E sai.

domingo, 23 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XIII)

Em tempos de cólera, em suma, em tempos em que era preciso muita imaginação para burlar as apertadas margens da censura de textos e das proibições de recitais, Raimon encontra na linguagem simbólica vocábulos suplementários, aditivos, que lhe permitem reforçar a sua mensagem essencial: nação livre, sociedade justa, política de esquerdas.

É neste panorama que cabe entender com significados acrescidos toda uma série de factos, independentemente do valor que possuem por si. A dedicatória de uma canção, "Sobre la pau", a Che Guevara. O livro Poemas i Cançons, pensado ao milímetro, com uma citação do vietnamita Fam Van Dong, o magnífico prólogo de Manuel Sacristán, então membro da direcção do PSUC, expulso da universidade, não obstante ser um dos intelectuais espanhóis de maior prestígio, e a capa de [Antoni] Tàpies, um "No" enorme inspirado em "Diguem no", que depois seria retomado nos cartazes contra a pena de morte. O disco intitulado "A Víctor Jara", cantor chileno cruelmente assassinado pouco depois do golpe de estado do general Pinochet, com a versão de "Te recuerdo Amanda", tema, por coincidência, na linha que une amor e luta.
Coragem, portanto, ao convocar o acto do Palau dels Esports, e a necessária dose de inconsciência que tantas vezes a torna possível, até mesmo nos mais impenitentes praticantes do racionalismo como Raimon.

Raimon figurava numa "lista negra" de cantores, incrivelmente assim chamada, divulgada pela Direcção Geral de Segurança a 14 de Julho de 1975. Havia nela vinte e um nomes, quinze dos quais, catalães. Raimon acumulou, desde a sua irrupção na Universidade de Valência até àquele último ano de vida de Franco, uma ficha policial que precisa de duas gavetas metálicas daquelas que serviam para guardar papéis antes de o ordenador converter tanta matéria em energia. Raimon estava afastado dos considerados "catalano-separatistas", ao lado de, entre outros, Josep Benet, Oriol Bohigas, Josep-Lluís Carod-Rovira, Carles-Jordi Guardiola, Joan Manuel Serrat, Josep M. López Llaví, Albert Ràfols Casamada, Carme Serrallonga, Joan Armet, Alexandre Cirici, Pi de la Serra, Miquel Sellarès e Romà Gubern. As outras entradas do arquivo policial, com adjudicações verdadeiramente surreais, ao lado doutras mais que acertadas, eram, em suma, "PC-PSUC", "anarquismo", "grupúsculos de extrema esquerda", "catalanistas" e "catalanistas de pendor socialista".

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XII)

Raimon reflectiu muito sobre aquele momento de atonia e sobre que contribuição podia dar. Optou pela função de catalisador, o que provoca uma reacção química. Consciente da sua capacidade mobilizadora, aproveitou-a e aplicou-a. Um recital massivo, no maior ajuntamento tentado por um único cantor de língua catalã, 6 mil pessoas nas bancadas, muitas mais na pista. Parecia impossível.
Mas provou-o, com uma inusitada coragem. A coragem era um requisito imprescindível para enfrentar os energúmenos sem escrúpulos encarregados de carregar de sentido a patética palavra "ditadura". Raimon vive sob a permanente tensão dos que enfrentavam um sistema totalitário: detêm-no, fazem-no falar, tem de pedir autorização, enviam-lhe a polícia para o controlar a ele e ao público, tem de levar as canções à censura concerto a concerto, apreendem-lhe o passaporte, proíbem-no por temporadas... "Dels anys patits on tot ha estat perill" ["Dos anos sofridos onde tudo era perigo"], como resume num verso de "Que tothom". Raimon lembra assim aquela experiência de ansiedade permanente:

Proibiam-me o tempo que queriam, interrogavam-me... Havia autênticas bestialidades, como notificar-me a que fosse fazer declarações à esquadra da polícia, a terrível Via Laietana, que só de lá ir já causava... Para me acusarem de ter feito uma canção contra o Papa. Referiam-se ao poema de [Anselm] Turmeda "Elogi dels Diners", do século XVI! E momentos muito duros, momentos muito duros... Quando nos fechámos em Montserrat, pelo Processo de Burgos, eu estava proibido e a coisa foi de mal a pior. Chegaram a fazer-me fazer um requerimento para poderem dar-me permissão para actuar, autorização para pedir autorização. Era aviltante e kafkiano. E aquela impotência...

Manuel Vicent diz com a sua ironia que sempre distancia e liberta: "Raimon levava consigo uma aura de gás lacrimogéneo e à sua volta, dentro do fumo, dançavam guardas com vergasta, censores com carimbos, governadores de bigodinho imperial". Raimon, em idêntica postura de escapar ao ferro, de relaxar com humor, respondia assim a um membro do Clube de Joves de Ontinyent que o entrevistou depois de um recital, em Setembro daquele mesmo ano de 1975:

- Raimon, é muito difícil entrar em contacto contigo... Como podemos localizar-te ou ter informações do teu paradeiro?
- Pfui!!... Mas se é muito simples! Basta irem perguntar a qualquer esquadra da polícia...

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XI)

Mas ficarmo-nos pelos recitais que ficaram gravados na memória colectiva seria cortar muito a eito. Raimon faz mais de uma centena de recitais por ano, e percorre toda a geografia dos Países Catalães. Canta nos lugares mais inverosímeis e aproveita todas as datas, a festa maior, os encontros, a comemoração de algum acontecimento cultural. O programa de mão da actuação de Raimon na Festa Major de Terrassa, a 5 de Julho de 1971 dizia:

Depois dos seus últimos êxitos em Itália temos Raimon entre nós.
Faz quase três anos que não o víamos actuar aqui em Terrassa.
Hoje, em plena Festa Major, poderemos ouvi-lo.

Por isso mais que nunca nos sentimos acompanhados a seu lado, abrigados pelas suas canções e pela sua mensagem.
A sua autenticidade, o seu amor para com os oprimidos, assim mesmo o ouviremos, podemos repetir: é tão grande artista como lutador e o seu canto é a síntese destes dois ingredientes: Arte e Luta.

É de muito especial relevância para este capítulo o recital que Raimon protagoniza no Palau dels Esports de Barcelona, a 30 de Outubro de 1975. Franco estava na cama e a oposição não sabia nem o que fazer nem como se mexer, momentos de grave indecisão semelhantes aos que se repetiriam na noite de 23 de Fevereiro de 1981, durante a tentativa de Golpe de Estado. A ditadura queria perpetuar-se e tinha reactivado as piores impulsos da sobrevivência a qualquer preço. Passavam-se apenas trinta e três dias que tinham sido executados cinco militantes antifranquistas, um deles, Juan Paredes, "Txiki", em Cerdanyola, e todos as forças de segurança e do exército estavam em alerta máximo. [*]


[*] - Foi depois dessas execuções que, cá, em 27 de Setembro, houve o saqueamento da embaixada espanhola por uma população enfurecida.
Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Uma pausa com "Campus de Bellaterra"

Campus de Bellaterra, 30 de Outubro de 1974

Deste disco, e apesar de se perceber que não se apresenta como um registo contínuo (tem cortes no fim das músicas, e desconhecemos o que se passou entre elas), sobressai o espaço aberto, que se ouve no eco e na voz de Raimon. Sobressai também silêncio, não já tenso como noutros concertos, mas de empatia e companhia por parte do imenso e jovem público que ficou retratado na capa deste disco.

Por estes anos, Raimon optava por canções mais recentes e imediatas. Atente-se na ausência, pelo menos aqui, de, por exemplo, "Al Vent", "Cançó de les Mans", canções emblemáticas dos primeiros anos, talvez por isso preteridas, ou ainda, com a união contra o regime já num processo mais avançado, a ausência de "Diguem No". Seria mais que adequado cantá-la. Mais notória ainda é a falta de "D'un Temps, d'un País". Mas talvez fossem demasiado fortes para a paz que parece emanar desta tarde com algum vento (podemos ouvi-lo, por exemplo, na homenagem e na canção de Víctor Jara, "Amanda" - procurem-na, foi a 16º entrada na caixa de música).

Essa paz e o abraço imenso do espaço até nos permite ouvir as pontas das cordas da guitarra a abanar ao vento.

E quase que estamos lá.

Se o virem por aí, não percam a oportunidade. Se os objectos nos enriquecem com o que extraímos deles, e não propriamente com a mera posse deles, que é o que distingue a riqueza interior da exterior, avancemos nessa direcção.


Este disco conheceu, tanto quanto sabemos, as seguintes edições:

1 - Campus de Bellaterra
Lp, 1974, Movieplay S-32568

2 - Campus de Bellaterra
Cd, 1992, Fonomusic CD-1159

3 - Discografia Básica
3Cd, 2004, Dro East West 5046736822 (juntamente com outros dois álbuns originalmente editados pela Movieplay: A Víctor Jara (1974) e Lliurament del Cant (1977))

4 - Campus de Bellaterra
Cd Digipack, 2004, Dro East West 5046746512 (a edição que possuímos e apresentamos)

sábado, 15 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (X)

Era um recital massivo, 5 mil pessoas, que sob condições normais teria motivado um bom destacamento de jornalistas, crónicas, críticas e, naturalmente, uma linguagem que não precisasse de criptógrafos para ser decifrado: Raimon foge porque o espera a polícia, e o desemprego é uma greve, que também estava obviamente proibida. A crónica ao lado da de Raimon dá também uma dimensão do que era importante ou de como se valorizam as notícias:

Ontem, na cantina do Círculo del Liceu, onde se reúne, desde há muitos anos, a Peña de los Viernes (de que fazem parte muitas personalidades barcelonesas), esta entidade fez uma homenagem de simpatia e afecto a don Luís Martí y Olivares, marquês de Rebalso, sócio número um, famosa personalidade barcelonesa, octogenário, que ocupou altos cargos na cidade, entre os quais, o de chefe superior da polícia, depois da libertação de Barcelona em 1939.

Conhecidos nomes catalães assistem, de facto, à homenagem à ínclita personagem que dirigiu a feroz repressão quando as forças franquistas entraram na cidade: Aleix Buxeres, Lluís Trías de Bes, Tomás Martínez Fraile, Josep M. Mas-Sardà, Francesc Peris-Mencheta, Ignasi Macaya, Gonçal i Àlvar Fuster-Fabra, Miquel Lerín, Ernest Tell, Gabriel Brusolas, Joan Capo, Josep M. Lacalle... Presidia à sessão o capitão general, Alfonso Pérez-Viñeta, o falangista que comandava os pretorianos de Franco, a polícia moura que ocupou Barcelona em 26 de Janeiro de 1939.

Três anos depois do recital na Faculdade de Direito, outra grande convocatória universitária. Campus de Bellaterra. Do recital multitudinário de Bellaterra sairá um disco, graças ao engenho do técnico de som que, quando a polícia quis apreender a matriz do registo, fez passar gato por lebre dando-lhes uma gravação de palhaços do grupo de Aragón, Gaby, Fofó, Miliki e Fofito, artistas do selo Movieplay, como Raimon. O dinheiro obtido destinou-se à célula universitária do PSUC, à compra de uma fabulosa fotocopiadora de última geração, e uma soma foi para militantes libertados e para outras despesas relacionadas com as prisões. Miguel Nuñez, então dirigente do PCE e responsável do Comité de Barcelona do PSUC, um dos líderes carismáticos da história da resistência antifranquista, disso deixa testemunho no seu belíssimo livro de memórias, La Revolución y el Deseo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (IX)

No La Vanguardia a crónica do recital de Raimon no polivalente da Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, exemplo de uma notícia curta da época, dizia o seguinte:

Uns cinco mil estudantes, embora o número seja difícil de precisar, assistiram ontem ao meio-dia ao recital que Raimon deu na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona. No edifício e em diferentes lugares colocaram-se fotografias do cantor. Raimon, que actuava sem receber qualquer dinheiro, já há dois anos - mais concretamente desde Novembro de 1968 - que não dava um recital em Barcelona. Raimon dedicou algumas das 17 canções que interpretou ao comandante Ché Guevara, ao País Basco e a Joan Miró. Muitas das canções, e certas letras em especial, foram cantadas pelos estudantes que assim aplaudiam no final de cada intervenção. Alguns estudantes soltaram grandes cartazes. Os cartazes provocaram reacções de protesto por parte de alguns estudantes. Durante do decorrer do recital viu-se uma bandeira vermelha com a a foice e o martelo. Também se distribuíram exemplares do Mundo Obrero [diário do Partido Comunista, ilegal], entre outros panfletos. Apesar disso, o recital decorreu nos trâmites previstos e nos quais se baseava a autorização do director da Faculdade, que autorizou, como se sabe, o acto. No fim da canção número 17, Raimon saltou por uma janela que dava para a parte traseira da Faculdade, entrou num carro que estava estacionado e desapareceu com três pessoas que o acompanhavam. No recital estava o cantor Pi de la Serra. Sabe-se que o dinheiro das entradas era destinado a fazer face às necessidades económicas dos trabalhadores da empresa AEG Telefunken, de Tarrasa, que estão no desemprego devido a uns problemas com a empresa. À saída do recital os estudantes depararam-se com a presença de corpos da Polícia Armada. Um pequeno grupo deu gritos de "Liberdade!". Outros, posteriormente, tentaram manifestar-se nas proximidades da Faculdade. No entanto, a presença da força pública frustrou a acção.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (VIII)

O jornalista Manuel del Arco, tido como o melhor entrevistador de formato diário curto, um género hoje extinto, publica no dia do recital da Faculdade de Direito uma entrevista muito interessante. Del Arco gozava de alguma confiança por parte do regime, e podia permitir-se, de vez em quando, a forçar a situação. A sua entrevista a Raimon sai no La Vanguardia a 13 de Março de 1970. A secção de Del Arco chama-se "Mano a Mano" e, naquele dia, sai ao lado de uma notícia segundo a qual se notificava da obrigação de requerer autorização do chefe de Estado para poder adoptar filhos, e uma outra sobre a melhoria de uma cólica dos rins do general Perón, que dera entrada na Fundação Puigvert.

Manuel del Arco conduz uma entrevista ousada. Raimon também aposta forte:

- Porque é tão caro ouvir-te aqui, ainda que agora o faças gratuitamente?
- Para mim é uma questão de burocracia.
- Papéis, carimbos e autorizações?
- Sim; assinaturas e permissões que nunca chegam a tempo, ou que simplesmente não chegam.
- É assim tão perigoso o teu idioma?
- Pode ser uma questão de opiniões; eu acho que não. Se Espanha é Europa, não vejo porque possa cantar em Catalão em França, Itália, Alemanha, tanto em actuações públicas como em televisão, e, aqui pareça estranho o meu idioma; muito mais se ouvido em salas de teatro.
- Será pelo que dizes?
- Na canção há uma censura prévia; quer dizer, que o que eu vou cantar em público é examinado antes pela autoridade competente. Não fujo às normas estabelecidas no país; não ajo fora da lei.
- Esta tua postura não prejudica a tua actividade artística?
- Se te referes ao facto de não cantar em Castelhano, não creio que isso seja limitar-me. Cantar numa língua minoritária não significa automaticamente um público reduzido. Dou um exemplo, sem sair da canção: Theodorakis canta na sua língua e é conhecido em todo o mundo. Aparentemente podia dar a impressão de que para sermos conhecidos deveríamos cantar todos em Inglês; mas eu acredito que em toda a criação artística, em geral, a qualidade impõe-se sobre as facilidades que a quantidade possa oferecer. (...)
- Mas tu cantas para exibir as tuas faculdades artísticas ou para expressar-te como jovem do teu tempo?
- Penso que as minhas possíveis faculdades artísticas são-no enquanto possam contribuir, como jovem deste tempo, para a radical transformação de uma sociedade que não queremos. A arte pode ser também maneira de interpretar o momento histórico que se vive.
- Procuras que te rotulem de cantor de intervenção?
- Quem conhece as minhas canções pode ver que fujo às etiquetas. Penso que o homem é muito mais coisas que uma canção de amor ou de denúncia por sistema. Mais, tento que nada do que nos preocupa como homens fique de fora das minhas canções. É tão importante para mim o homem só em sua casa como o homem da rua com os outros; o que, traduzido em canções, quer dizer que uma canção lírica ou uma canção civil ou colectiva têm o mesmo valor. Se alguém me rotula assim é de má fé.
- Não te sentes profissional da canção, ainda que vivas dela?
- Sim, em relação à responsabilidade e ao que supõe lutar por uma maior perfeição e rigor no meu ofício concreto, que é a canção. Ao mesmo tempo que me preocupo em conhecer toda uma cultura própria que, em certa medida, se me foi ocultada na escola; por exemplo, a mim ninguém me disse, quando estudava literatura espanhola, que Quevedo tinha traduzido poemas de Ausiàs March; fiquei a sabê-lo ao ler um livro de Martín Riquer. O que nos demonstra que noutros tempos o contacto cultural entre as diferentes culturas peninsulares era muito mais aberto e fecundo que nos nossos dias.
- Outros, que começaram como tu, vão cedendo. Não temes ficar sozinho?
- Em princípio, a solidão não me afecta. Logo, o que estou a fazer é o que estou a ser e a sentir. E depois, as dificuldades que isso possa comportar não são argumento suficiente para que eu mude a minha forma de estar no mundo.

domingo, 9 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (VII)

Naquele ano, 1970, Raimon colabora no activismo com o seu recital na Faculdade de Direito, muito sensibilizada porque o Processo de Burgos é estudado e debatido graças ao facto de um advogado catalão, grande político do PSUC que com a democracia será deputado, Josep Solé Barberà, defender um dos arguidos, Josu Abrisketa; o seu filho, Josep Solé Fortuny, então estudante, põe todos ao corrente de como se desenrolam os acontecimentos, com o apoio de uma poderosa célula comunista. Raimon toma também partido na barricada que intelectuais e artistas fazem no mosteiro de Montserrat, que terá grande repercussão internacional, por nela se pedir a comutação das penas capitais. E arrisca-se individualmente ao esconder militantes bascos. Daí nascerá uma boa amizade com o hoje jornalista Patxo Unzueta.

Raimon estava proibido mas canta na Faculdade de Direito graças a uma corajosa autorização do seu director, que estava ciente de que em sede universitária não era necessária autorização governativa para actos culturais. Escolhe uma data simbólica, 13 de Março, e dá também entrada livre a trabalhadores em greve. Depois parte para os Estados Unidos, porque aqui se lhe tinham sido fechadas todas as portas. Lá conhece Rafael Ribó e Roser Argemí, Fernando Santos, Miquel Barceló, Nicolás Sánchez Albornoz, Emilio Rodríguez e a família Seeger, Pete, Toshi e a sua filha Misha.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (VI)

Nos anos de 1970 e 1973, volta a dar grandes recitais para universitários. Primeiro na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona; depois, no Campus de Bellaterra.

1970 é um outro annus horribilis para as forças democráticas que lutam contra a ditadura. O Processo de Burgos, conselho de guerra no qual se pede pena de morte para seis militantes da ETA, junta um grande movimento de solidariedade e também uma imensa onda repressiva, com a promulgação de um novo estado de excepção. A liberdade tem de se equilibrar a caminhar pelo gume de uma enorme faca: "Todos os que sofreram / o peso da imensa bota / e a afiada espada / sabem o que é o medo", diz em "Contra la por" [Contra o medo], de 1968. Catalunha demonstra a sua solidariedade para com Euskadi; a massiva, na rua; a pessoal, acolhendo e escondendo bascos que fogem do seu território. Raimon era sensível à problemática basca e tinha já dedicado duas canções ao tema, "El País Basc" e "A un amic d'Euskadi".

["El País Basc" é uma das canções mais profundas e pesadas que Raimon compôs. A sua metáfora imponente fala o alfabeto da solidariedade e do grito pela justiça. Muito do peso está talvez nas 5 notas (!) que acompanham o texto. Se se critica a menoridade / simplicidade musical do Raimon dos primeiros tempos, que neste caso é mais que notória, tal dificilmente pode dizer-se da sua capacidade comunicativa, do seu poder de síntese enquanto narrador e do seu valor enquanto poeta. A versão desta canção de 1967, a 28ª na caixa de música, é das mais despidas e cruas, acentuando esse sentimento. Está incluída num Lp homónimo que compila as gravações (feitas, penso, em 1968) que Raimon fez para a série Inici da etiqueta Discophon, editado em 1971. Em 1999, este disco teve uma edição em Cd, pela Discmedi Blau, sob o nome "Dotze Cançons"]




Tots els colors del verd
sota un cel de plom
que el sol vol trencar.

Tots els colors del verd

en aquell mes de maig.
/

Todas as cores do verde

sob um céu de chumbo

que o sol quer romper.

Todas as cores do verde

naquele mês de Maio.


Portava el vent la força

d'un poble que ha sofert tant.

Portava la força el vent

d'un poble que ens han amagat.
/

Portava o vento a força

de um povo que sofreu tanto.
Portava a força o vento

de um povo que nos esconderam.


Tots els colors del verd

sota un cel ben tancat.
/

Todas as cores do verde
sob um céu bem fechado.


I l'aigua és sempre vida

entre muntanyes i valls.

I l'aigua és sempre vida

sota la grisor del cel.
/

E a água é sempre vida

entre montanhas e vales.

E a água é sempre vida
sob a cinza do céu.


Tots els colors del verd

en aquell mes de maig.
/

Todas as cores do verde

naquele mês de Maio.


És tan vell i arrelat,

tan antic com el temps

el dolor d 'aquella gent.

És tan vell i arrelat

com tots els colors del verd

en aquell mes de maig.
/

É tão velha e arraigada,
tão antiga como o tempo

a dor daquela gente.

É tão velha e arraigada
como todas as cores do verde
naquele mês de Maio.


Tots els colors del verd,

Gora Gora, diuen fort

la gent, la terra i el mar
allà al País Basc.
/

Todas as cores do verde,

Gora Gora, gritam forte
a gente, a terra e o mar
lá, no País Basco.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (V)


Folheto-guia do primeiro recital de Raimon na Galiza, em 9 de Maio de 1967, em Santiago de Compostela, com as letras traduzidas por Carlos Casares e Salvador Garcia-Bodaño e ilustrado por Andreu Alfaro. Importa referir que este recital foi importantíssimo para o despoletar do movimento da canção de intervenção na Galiza. À semelhança dos Setze Jutges, vários cantores surgiram sob o nome de Voces Ceibes, onde estavam Benedicto, Miro Casabella, entre outros. Leiam a entrada da Vikipédia para o conjunto.


A Unión de Departamentos de Actividades Culturales de la Universidad de Madrid edita em offset as letras das canções de Raimon, com traduções em Castelhano por Gabriel Celaya - que depois dedicaria um poema a Raimon -, José Hierro, Jesús López Pacheco, Jorge Ruiz Gusils e José Augustín Goytisolo. A capa é a do desenho de Andreu Alfaro que servirá para os recitais que então fazia que levavam como título "Raimon, a voz dum povo". Grande cartaz cultural para uma modestíssima e ilegal impressão.

Raimon canta, portanto, num curto espaço de tempo, para o movimento operário e para o movimento estudantil, vanguardas da luta antifranquista. Mas, um ano antes, tinha feito o Palau de la Música Catalana, espaço natural da arte dos sons. Os trabalhadores de Barcelona e os estudantes de Madrid, máximos expoentes do que cá podia ter sido o mítico 1968, tiveram grande impacto em Raimon. Expedientes policiais e quase dois anos de proibição, depois de um recital que fora, já ele, muito quente. Em 30 de Novembro daquele 1968, Ovidi Montllor, Pi de la Serra e Raimon enchiam pelas costuras o Palau de la Música. Figurava milagrosamente o pano que tapava as quatro barras que presidiam o cenário, e o canhão de luz descobria uma decoração insólita.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (IV)

Em 1968, cúpula do imaginário de todos os progressismos, em que o Maio francês fez tombar os padrões revolucionários e os tanques soviéticos os beliscaram na Checoslováquia, Raimon dá dois recitais que cosem ponto por ponto o padrão - que seria de nós sem as metáforas têxteis! - da mobilização de massas, da canalização de uma revolta carente de cenários e apenas dotada de saídas de emergência. As datas e os motivos ficaram imprimidos e gravados porque, Raimon, no seguimento destes recitais, compõe duas canções: "13 de març, cançó dels creients" e "18 de maig a la villa". É curioso, aliás, que dois títulos de um mesmo ano comecem por números e sejam datas.


Em 13 de Março de 1968, Raimon canta no Gran Price, um ringue boxístico, em benefício das Comissiones Obreras [CO]. As CO foram fundadas em 1964, e em 1966 era criada a Comissió Obrera Nacional de Catalunya. O seu protagonismo como vanguarda das lutas dos trabalhadores durante o franquismo praticamente não teve paralelo, feito que lhe custou altos preços por parte da repressão. Para lá disso, a ditadura cobrou dois mortos pela grave infracção de participar numa greve: em 29 de Outubro de 1971, Antonio Ruiz Villalba, trabalhador da SEAT, e em 3 de Abril de 1973, a central térmica de Sant Adrià del Besòs, Manuel Fernández Márquez. Ambos tombaram a disparos da polícia. A prisão Model estava repleta de líderes das CO, alguns dos quais esperavam julgamento por tribunais militares.


Em 18 de Maio de 1968, Raimon canta na Faculdade de Ciências Políticas e Económicas da Universidade Complutense de Madrid onde, depois, se dá lugar a uma grande manifestação que a polícia neutralizará com o seu aparelho anti-motins. Paris era uma grande barricada e Raimon regista tudo o que estava a acontecer:

["18 de maig a la 'Villa'" é a 27ª canção de Raimon na caixa de música ali ao lado. O primeiro registo data segundo disco ao vivo no Olympia (1969). O segundo surge em "Campus de Bellaterra" (1974) Optámos pela gravação do "Recital de Madrid" onde o ambiente e as palavras de Raimon mais bem a contextualizam. Razões suficientes para não julgarmos necessário traduzi-la.]




I la ciutat era jove,
aquell 18 de maig.
Sí, la ciutat era jove,
aquell 18 de maig
que no oblidaré mai.

Per unes quantes hores
ens vàrem sentir lliures,
i qui ha sentit la llibertat
té més forces per viure.

De ben lluny, de ben lluny,
arribaven totes les esperances,
i semblaven noves,
acabades d'estrenar:
de ben lluny les portàvem.

Per unes quantes hores
ens vàrem sentir lliures,
i qui ha sentit la llibertat
té més forces per viure.

Una vella esperança
trobava la veu
en el cos de milers de joves
que cantaven i que lluiten.

No l'oblidaré mai,
no l'oblidaré mai,
aquell 18 de maig,
no l'oblidaré mai,
aquell 18 de maig
a Madrid.


Canção claramente jonda, com um ostinato de guitarra amplificando o refrão; a propósito, uma das escassas canções de Raimon com refrão, ritornello ou estribilho, tão comum na tradição popular.


Imagens retiradas daqui, daqui e daqui.
Cliquem e leiam os textos, relatos e testemunhos.
Note-se que a imagem da revista Triunfo refere-se ao concerto do "Recital de Madrid", não ao de 18 de Maio de 1968.

sábado, 1 de agosto de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (III)

"T'he conegut sempre igual", tema inspirado na vida clandestina do então secretário-geral dos comunistas do PSUC, Gregorio López Raimundo, em nenhum momento menciona o seu nome e hoje não soa a datado, senão que é actual como explicação do que foi. Estávamos no ano de 1973, Raimon encontra López Raimundo no Quartier Latin de Paris. Falam amigavelmente. Apenas alguns dias depois, volta a encontrá-lo, mas a circunstância é completamente diferente: no passeio de Maragall. Em Paris, o dirigente do PSUC é um cidadão normal, em Barcelona, o homem mais procurado pela polícia, portanto não se saúdam. Ambos sabem que uma imprudência pode levá-lo à "comissaria" e à prisão. Gregorio López Raimundo leva consigo um honroso historial de luta e resistência às torturas mais selvagens, que também lhe valeram um poema de Rafael Alberti.


[A canção de Raimon, a n. 26 na caixa de música, é a versão original, incluída no álbum de 1974, "A Victor Jara".]


Alerta vius, jo sé que si caiguesses
tants anys, molts anys, massa anys et demanaven.
/

Alerta vives, eu sei que se caísses

tantos anos, muitos anos, demasiados anos te pediriam.

Entre els sorolls dels cotxes, del carrer

i de la gent que atrafegada passa,
he vist molt clar que són molts els que lluiten

i que com tu calladament treballen. /
Entre os ruídos dos carros, da rua
e da gente que vai passando atarefada,
vi claramente que são muitos os que lutam
e que como tu silenciosamente trabalham.


T'he conegut sempre igual com ara,

els cabells blancs, la bondat a la cara,

els llavis fins dibuixant un somriure

d'amic, company, conscient del perill.
/

Conheci-te sempre igual, como agora,

os cabelos brancos, a bondade no rosto,

os lábios macios a desenharem um sorriso
de amigo, companheiro, consciente do perigo.


Sense parlar m'has dit "tot va creixent",

lluita d'avui pel demà viu i lliure,

que es va forjant aquests dies terribles,

temps aquests temps de tantes ignoràncies. /
Sem falar disseste "tudo vai crescendo",

luta de hoje pelo amanhã vivo e livre,

que se vai forjando nestes dias terríveis,

tempo, este tempo de tantas ignorâncias.


No m'he girat mentre serè em creuaves,
he sentit fort un gran orgull molt d'home,

no em trobe sol, company, no et trobes sol
i en som molts més dels que ells volen i diuen. /
Não me voltei enquanto quando sereno te cruzaste comigo,

senti forte um grande orgulho de homem,
não estou sozinho, companheiro, não estás sozinho

e somos muitos mais que os que eles querem e dizem.

Aquest meu cant és teu, l'he volgut nostre;

aquest meu cant és teu, l'he volgut nostre.
Alerta vius, jo sé que si caiguesses

tants anys, molts anys, massa anys et demanaven.
/

Este meu canto é teu, qui-lo nosso,

este meu canto é teu, qui-lo nosso,

Alerta vives, eu sei que se caísses

tantos anos, muitos anos, demasiados anos te pediriam.


T'he conegut sempre igual com ara.

Conheci-te sempre igual, como agora.



É uma crónica histórica: passado é o feito, não a sua explicação. Tal como a belíssima factura qualitativa de decassílabos navegando sobre uma melodia que extrai de "Veles i Vents". Não podemos dizer o mesmo, por exemplo, de temas como os que Víctor Manuel fez inspirando-se noutros líderes comunistas contemporâneos e companheiros de López Raimundo como Dolores Ibárruri ou o dirigente mineiro asturiano Horacio Fernández Inguanzo, que já foram compostas utilitariamente e sem pretensões a resistir ao tempo.