domingo, 13 de dezembro de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XXIII)

Raimon reflectia assim sobre as suas várias passagens por Madrid, pelo menos sobre as de 1968 e de 1976, consideradas históricas por alguns comentadores:

A Madrid nunca se foi com tranquilidade, no sentido de poder fazer bem os recitais, sempre se foi lá aproveitando situações estranhas que te abriam alguma possibilidade para cantar. Mas acabavam por te proibir ou acabava mal, exceptuando Dezembro de 1976, em que consegui fazer uma semana no Teatro Fígaro. A partir daí as coisas entraram na normalidade, mas antes... Cantei em concertos colectivos, como no Festival de los Pueblos Ibéricos e numa festa do PCE. O da Faculdade de Economia, em 68, despoletou uma grande manifestação. No de Fevereiro de 76 mostrava-se pela primeira vez publicamente a Plantajunta.
Foram recitais muito cívicos, no sentido de impacto na sociedade, mais além do estritamente artístico, para dizê-lo de alguma maneira, e talvez isso tenha feito com que a canção passasse a um segundo plano e um facto circunstancial. Lembro-me de uma forma especial o recital do "18 de Maig a la Villa". Havia toda a ajuda de Paris e aqui estávamos expectantes, a ver o que se ia passar. Eram momentos excepcionais, de tensão, pelo menos para alguns, uma minoria se nos comparássemos à quantidade de gente que saia à rua do Quartier Latin.
Sempre gostei muito de Madrid, sempre lá fui actuar quando pude e houve uma grande comunicação, apesar de cantar numa língua diferente. Mas o feito artístico e cívico rompe qualquer obstáculo.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XXII)

Raimon vai a Madrid. Franco já morreu e as organizações unitárias da oposição mobilizam-se. Em Espanha são a Junta Democrática, que gira em torno do PCE e das CCOO, e a Plataforma de Convergência Democrática, movida pelo PSOE e pela UGT. Acabarão por se unir, no fim, sob o nome popular Platajunta. Raimon assegura também aos seus representantes as primeiras filas: Felipe González, Marcelino Camacho, Fernando Álvarez de Miranda, Joaquín Garrigues Walker, Simón Sánchez Montero, Josep Melià, Francisco Fernández Ordóñez, Nicolás Redondo, Joaquín Ruiz Giménez, Nicolás Sartorius, entre eles, e ao lado de intelectuais e artistas como agora Gabriel Celaya, José Hierro, José Luis García Berlanga, Jaume Camino, Juan Antonio Bardem, Adolfo Marsillach, Carmen Martín Gaite e Antonio Saura. Escolhe as instalações desportivas do Real Madrid - impossível despistar melhor que no território de Don Santiago Bernabéu - e os dias 5, 6 8 e 9 de Fevereiro de 1976. Mas apenas fará uma actuação. A Direcção Geral de Segurança, às ordens de Manuel Fraga Iribarne, encarregado da pasta do Ministério do Interior, emite esta nota:

Às 22:30 horas do dia 5 do corrente, e na Cidade Desportiva do Real Madrid, deu início o "Festival Raimon" com uma assistência de umas seis mil pessoas, que ocupavam os lugares das bancadas e da pista, além dos corredores e acessos, dificultando a deslocação do público até aos seus lugares.
Desde o começo, o acto converteu-se numa autêntica manifestação política, com exibição de punhos fechados e gritos tais como "Dolores Ibárruri a Madrid", "Carrillo", "Amnistia", "Liberdade" e outros. Ao mesmo tempo, soltaram-se bandeiras vermelhas, tanto entre o público como no próprio palco, sendo a sua aparição acolhida com gritos e palavras de adesão.
Posteriormente, no cenário expôs-se uma bandeira com as cores anarquistas, e proferiram-se frases injuriosas contra Sua Majestade o Rei do Juan Carlos I, e ataques verbais contra a polícia.
Às 00:15 terminou o encontro, abandonando os assistentes o local, não se produzindo incidentes nem manifestações.
Face a estas lamentáveis circunstâncias, foi suspendido o recital anunciado para o dia de hoje e denegada a prorrogação para os próximos dias 8 e 9.


Raimon, no encontro, fez o seguinte programa:
- La nit
- Só qui só
- Qui ja ho sap tot
- El País Basc
- Al vent
- Sobre la pau
- Contra la por
- T'adones, amic
- T'he conegut sempre igual
- Inici de càntic
- Jo vinc d'un silenci
- Quatre rius de sang
- Es veu
- 18 de Maig a la Villa
- Indesinenter
- La muntanya es fa vella
- Quan jo vaig nàixer
- Cançó del remordiment
- D'un temps, d'un país
- Sobre la por
e
- Diguem no.

Três bises e um novo "Diguem no" em versão hino, cantada por mais de cinco mil espectadores.
Raimon reúne a multitudinária representação jornalística, local de enviados especiais de todo o lado, como assinala um deles, um excepcional cronista, nem mais nem menos que Joan Fuster, e recusa duramente a continuidade franquista que faz ver que avança para a Democracia - Adolfo Suárez não tinha sido nomeado presidente- mantendo ainda 2 mil presos políticos: "Não me deixam cantar, e uma democracia afónica é algo muito triste."

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XXI)

Depois do êxito artístico, social e político do Palau dels Esports, Raimon pensa fazer algo parecido em Madrid, também ao laod de Oriol Regàs e empregando muito jornalista. Manuel Vázquez Montalbán, sob o pseudónimo de "Sixto Cámara", um alter-ego que supostamente vive em Madrid, escreve uma bela coluna no semanário Triunfo (31 de Janeiro de 1976), periódico essencial para entender o jornalismo democrático em tempo de ditadura. Nela se encontra uma citação livre de Raimon quando diz "a Lei Antiterrorista fechava toda a espécie de bocas e mãos". Começa com uma premonitória frase, que infelizmente se cumpriria:

Se a autoridade não o impedir e o tempo histórico o permitir, Raimon vai cantar a Madrid, saltando por cima de uma ausência de vários anos. Ainda recentes os ecos da sua actuação no Palácio dos Desportos de Barcelona naqueles dias escuros em que a agonia de Franco tinha disparado os sinais de alarme, a Lei Antiterrorista fechava toda a espécie de bocas e mãos, os democratas acreditavam estar a viver uma marcha atrás no escuro túnel do tempo, deste tempo, destes trinta e seis anos de tempo. Lembro uma conversa telefónica com Raimon por aqueles dias. Convidava-me a voar até Barcelona para assistir ao acto do Palau dels Esports, "palau" que com as façanhas de Raimon e Llach adquiriu tanto significado na história da Catalunha e de Espanha como o Palau de la Música.
- Anima-te, Sixto. O acto força a gente a recuperar o moral. Há uma perda geral de iniciativas.

Assisti ao acto e dou fé - ão podia dá-la então porque o
Triunfo estava fechado - de que quase nove mil espectadores recuperaram a fala e a consciência de uma certa "comunhão dos santos". Foi um acto emocionado, algo crispado, entre a catacumba e a rua, estimulante. Se se bebe uma, duas, três, quatro, cinco garrafas de vinho com Raimon, parece que estamos a bebê-las com um intelectual pré-revolucionário, ultimamente fascinado pelo papel do Estado não só na sociedade capitalista, mas sobretudo na socialista. É um Raimon muito lido, ainda que os frágeis óculos não escondam totalmente uma vitalidade quase agrária, valencianíssima. Quando Raimon surge num palco produz-se um milagre de transubstanciação e o furacão de Xàtiva sopra o vento histórico poderoso sem outro acompanhamento que o da guitarra. Entre Raimon e o público estabelece-se uma ligação política total e conformam juntos um ser vibrante, épico, duro como quartzo. É uma relação curiosa. Raimon exige ao público compromisso político. O público exige a Raimon que seja exigente com o público. Em mangas de camisa, com as mãos ocupadas pela guitarra, sob um foco de luz que delimita o escasso território de um homem que canta só, com as palavras mais económicas, justas, necessárias, com uma música suficiente surgida da memória melódica popular, Raimon agiganta-se e agiganta o público. De alguma forma é, de facto, um milagre. E é o milagre da recuperação colectiva da razão histórica, no duplo sentido da razão racional e da razão lógica. A reivindicação da Razão e das razões de uma colectividade e dentro destas, das peculiares da colectividade catalã e das forças democráticas, populares, progressistas.

A última vez que vi Raimon e Annalisa, sua companheira, falámos de Gramsci. E a este grande teórico devíamos regressar para explicar definitivamente o fenómeno Raimon. Toda a sua força cénica não nasce apenas da raiva e da razão. Tem o seu esqueleto nessoutro Raimon lido, cujos frágeis óculos não escondem por completo uma vitalidade agrária, valencianíssima.

domingo, 6 de dezembro de 2009

VIII - Tu que m'escoltes amb certa por (XX)

Em 1974, em "Qui ja ho sap tot", incide na mesma temática, nas razões que o levam a cantar. Arranca com a socrática modéstia de quem se diz ignorante ou adscrito à cartesiana dúvida universal - "L'única seguretat" insistirá - e desenvolve mais as forças motrizes da sua actividade, que enumera com precisão:

["Qui ja ho sap tot" já por cá apareceu (foi a 21ª canção de Raimon) e volta. A mesmíssima versão, gravada no Recital de Madrid. Não é necessário traduzi-la. Ele mesmo o faz para nós, antes de a cantar. Eis portanto a 30ª canção.]

Qui ja ho sap tot que no vinga a escoltar-me,
que no vinga a escoltar-me.
Sempre he cantat per qui ha volgut aprendre,
perquè jo encara aprenc de qui m'escolta,
de qui em fa callar o no m'escolta,
per això dic:
qui ja ho sap tot
que no vinga a escoltar-me,
que no vinga a escoltar-me.
El desig i l'esperança,
la derrota no acceptada,
el dubte de tot saber,
l'alegria ben guanyada,
la tristesa d'un temps malalt
d'hipocresia forçada
que volem ben diferent,
és el que jo cante.
Qui ja ho sap tot
que no vinga a escoltar-me,
que no vinga a escoltar-me.
Un crit cert i uns quants matisos,
poemes de vells poetes,
un amor encara viu,
molta ràbia acumulada
en la lluita necessària
contra el matalàs immens
que ens volen posar damunt,
és el que jo cante.
Qui ja ho sap tot
que no vinga a escoltar-me,
que no vinga a escoltar-me.
El desastre quotidià
que s'allargassa anys i anys,
la lentitud de la represa
i els que cauen pel camí,
els tirs mal dirigits
i, per què no dir-ho també?
una fe, una gran fe
en determinada gent,
és el que jo cante.
Qui ja ho sap tot
que no vinga a escoltar-me,
que no vinga a escoltar-me.

Para todos eles e por todos estes motivos, Raimon torna-se - e é este o último elemento que é preciso destacar do artigo de Roig - um líder. Viviam-se tempos de substituição. A proibição de fazer política não a eliminava, obrigava-a a imaginar vias alternativas. Sim, havia políticos democratas, mas castravam-se-lhe a necessária epifania do encontro e o banho de massas. Raimon teve de fazer este segundo papel, mas com a honradez de sempre deixar claro que não era um político nem aspirava a sê-lo, e dando protagonismo aos verdadeiros políticos quando podia, como no recital no Palau dels Esports, no qual, como se disse, os sentou nas primeiras filas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

El Recital de Madrid

Originalmente propriedade da Movieplay espanhola, depois Fonomusic, hoje incluída no grande grupo da Warner Music (Spain, no caso), o disco do mítico concerto de Madrid, em 1976, conheceu nova reedição. Não necessariamente no ano que está prestes a terminar, mas no ano passado, 2008.

À semelhança dos discos que Lluís Llach gravou para a editora, também reeditados nos mesmos moldes, esta reedição é em digipack e traz uma entrevista (em quatro páginas do livreto, em letra miudinha) feita em 2000 por Victoria Prego (a data não é indicada, mas infere-se):

"Raimon é o único artista que me recebe fora de sua casa, num hotel próximo das Ramblas. Tem o cabelo branco, mas tão espetado que parece um miúdo. Isso, e os olhos brilhantes, agudos e por vezes luzidios que sente que me chego demasiado ao seu interior, compõem a imagem de um moço de de 60 anos, com uma leve pose de amargura que ele veste de ironia e de desapego."

Traz também um resumido texto, da autoria de Maurílio de Miguel, sobre o seu percurso artístico, incidindo nas suas mais importantes actuações, seguido de um outro dedicado apenas ao presente concerto, que, como já tivemos oportunidade de dizer, foi gravado em 5 de Fevereiro de 1976 e ao qual se iriam seguir outros. Que foram cancelados devido ao "clima perigoso" ou "subversivo" que aí se criou.


Um pormenor da capa exterior da reedição, que podia talvez (ou muito bem) ter sido evitado é o descentramento das letras, tal como se pode ver ao lado.
De qualquer das formas, questão de preciosismos (a vivência do disco é mais importante que tê-lo, mas estamos dependentes do materialismo para renovar a memória registada), a capa do livreto interior está "correcta".

El Recital de Madrid.
Um disco fundamental.
Aliás, para nós, o melhor disco ao vivo do género.

A conhecer (outros discos "quentes" que se lhe podem juntar):

"Barcelona, Gener del 76" (1976, Movieplay; reed. Fonomusic, 2002) e "Camp Nou, 6 Juliol 1985" (1989, CBS; reed. 2003, Claus Records) - Lluís Llach.
"Palau d'Esports, Barcelona 27-2-1976" (1976, BASF; inexistente em cd) - Pi de la Serra
"FMI" - José Mário Branco (1982, Edisom, incluído na reed. de Ser Solidário (1996, EMI));


(Se alguém tiver mais propostas a juntar a esta curta lista, bem gostaríamos de conhecê-las.
Deixe aqui, portanto e por favor, o seu comentário.)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Quan ell va nàixer

Imagem extraída de "Tretze que Canten", de Joan Ramon Mainat,
Ed. Mediterrània; Barcelona, 1982



Há precisamente 69 anos, nascia a voz que se tornaria " el crit".
Raimon, o Homem e o Artista, "indestriable" da História da canção popular da liberdade.

Pela lucidez, pelo amor aos valores da memória, da liberdade, da paz e dos sentires colectivos por um mundo justo, sem "classes subalternas", Raimon é portador da esperança e da força.

Assim, e também hoje, lhe prestamos a nossa homenagem:


Som (Somos)


Indignos da tua luta.
Mal-agradecidos
Desprezadores
Vazios
Sem memória
Ignorantes e mortos

E não merecemos os frutos do teu grito.

Um arrepio na espinha quando tu cantavas,
Quando tu cantavas

Duro e puro
Somente a vibração de cordas de uma guitarra sola
Sob o teu canto
O teu grito.

Ouvindo-te
E imaginando o que seria nesse tempo
Nós só podemos ser indignos da tua luta.

Não,
Nós só podemos ser indignos da tua luta.


(20.01.2005)