Para este pequeno regresso às li(e)des, trazemos o primeiro disco da "Mare-mar" mediterrânica María del Mar Bonet.
Laura Almerich, a guitarrista que durante muitos anos acompanhou Lluís Llach, toca aqui a acompanhar María del Mar Bonet, coisa que ficámos a saber através da leitura de "Sempre más lejos", uma das muitas biografias do cantor de Verges.
Trago hoje as primeiras canções da cantora maiorquina, com o seu primeiro epê, de 1967, em que gravou 4 canções populares menorquinas.
Vídeo cortesia do blog Vinilìssim
Gràcies, amic!
Concèntric Ep #6042 UC
Texto de Lluís Serrahima na contracapa
Texto de Joan Bonet, pai (de María e de Joan Ramon, ambos cantores)
Da mesma sessão fotográfica, foram tiradas outras fotos, que, em formato imagem, ainda não estão na net.
Captadas por Oriol Maspons, sim, o mesmo que tirou as do primeiro epê de Raimon.
Ei-las:
Deo gratias, María del Mar Bonet, por teres enveredado pela canção. Escutem como soava esta miúda...
Tem havido muitos filmes sobre os anos 60 e sobre o que se passava, filmes sobre o envolvimento político dos artistas e por aí fora e o Phil tem sido posto de parte desta história. Mas tenho a dizer que não há ninguém mais importante para o movimento político nos anos 60 como "entertainer" que o Phil Ochs. Ele é mais importante do que Bob Dylan, ele é mais importante que qualquer um com quem estava a lutar; escreveu mais, esteve em mais encontros, cantou aquelas canções, ele mobilizava as pessoas, e foi apagado da história e temos de nos perguntar porquê.
Ken Browse, realizador de Phil Ochs: There but for Fortune
Hoje decidi dedicar o meu dia a Phil Ochs.
Hoje apetece-me chorar como nunca, mas não como nos dias em que já chorei.
Lembrar a vida, a voz, as canções e a emoção, a sensibilidade e a lucidez, a ironia e a humildade, a alegria e a solidão. Lembrar aquele sorriso...
Sentir tudo aquilo que ele representa e a injustiça que estamos a cometer ao esquecê-lo, ao não o ouvirmos, ao não o conhecermos...
Todo esse turbilhão de ideias e sentimentos se soma e se revolve na pessoa que escreve estas palavras.
É um sentimento que se junta, paralelo, ao que renasce quando lembro artistas como Víctor Jara, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes, José Afonso, Raimon...
Sim, Raimon está vivo.
Mas o que é estar vivo?
Há poucos dias tomei conhecimento que foi feito, finalmente - passados tantos anos após a sua morte - um filme sobre a vida de Phil Ochs. Chama-se "Phil Ochs: There but for Fortune".
Vai estrear no próximo dia 5 de Janeiro e podemos ler mais sobre ele aqui.
Por isso hoje vim aqui escrever, em Português e para todos os que queiram ler, sobre Phil Ochs. "A man too gentle to live among wolves", como já alguém disse.
O grande fascínio de infância de Phil eram os filmes de John Wayne. É uma referência que fará por diversas vezes. Uma delas está registada na introdução a "The Ringing of Revolution" do Lp "Phil Ochs in Concert" (Elektra EKS 7310, Maio de 1966, gravado no Inverno de 1965 e 1966 em concertos de Boston e Nova Iorque.)
Diz ele, antes de começar a cantar, entre os risos e aplausos da plateia (peço desculpa por não entender tudo o que ele diz):
"Vou cantar uma canção sobre a Revolução. Uma canção sobre o que tem sido verdade em todas as revoluções desde o começo, a francesa, a americana...
Esta é uma canção ficcionada, uma canção cinematográfica. Para terem uma ideia, só como exemplo, no topo da colina, na casa dos ricos, está o último dos burgueses, o último dos cantores folk, enquanto lhe vão fazendo um cerco, cada vez mais apertado pelo som da Revolução. Todos os que estão dentro se parecem espiritualmente com Charles Laughton, todos os que estão fora se parecem fisicamentecom Lee Marvin.
Na verdade, a canção é tão cinematográfica que foi feito um filme, realizado por Otto Priminger, em que entram o senador Carl Hayden, que faz de Ho Chi Min,
No livreto da reedição deste álbum (CD Elektra R1 73501, 1995), Danny Goldberg escreve assim ("enquanto aqui estamos"):
"Para Phil Ochs, eu era apenas um dos fans anónimos que compravam os seus álbuns e o saudavam nos encontros para a paz. Como podia ele saber o que significava para nós?
"Ele sofreu de baixa auto-estima - ele não sabia quão bom ele era", lembra o jornalista Jack Newfield, que viu as lágrimas a cair pelas faces de Bob Kennedy quando Ochs lhe cantou uma canção para o seu irmão assassinado. Ao que tudo indica, Ochs era duro para consigo, como muitos artistas, não percebendo como comovia as aqueles que experienciavam a sua arte.
"Phil Ochs mudou a minha vida", lembra Jim Carroll, que dedicou as suas memórias de ter crescido nos anos 60, "The Basketball Diaries", a Ochs. Carroll "ouvia pop como os Four Seasons até um colega na escola me ter dado a conhecer Bob Dylan, Joan Baez e Phil Ochs. Ochs causou de longe o maior impacto em mim. A partir daí, as minhas concepções políticas e estéticas mudaram". Bonnie Ratt teve um sentimento parecido: "O facto de ele e o Dylan estarem a escrever canções políticas mudou a minha ideia do que é um artista."
Phil Ochs também mudou a minha vida. Enquanto este álbum, "In Concert", ia sendo gravado em concertos de Boston e Nova Iorque no Inverno de 65-66, eu ouvia obsessivamente os seus primeiros dois discos, "All The News That's Fit To Sing" e "I Ain't Marching Anymore". Estes primeiros álbuns criaram ideias sobre política e música que, 30 anos depois, continuam a dar-me força.
À medida que o movimento dos direitos civis crescia e os protestos contra a guerra no Vietname começavam, Phil Ochs representava para mim e para os meus colegas universitários o que Crosby, Stills & Nash, Jackson Browne, Bonnie Raitt, Bruce Springsteen, U2 e REM significariam para gerações seguintes. "Se fores um jovem, tentar perceber o idealismo, a convicção, e o burbulhar dos primeiros anos 60, as canções de Phil Ochs são dos melhores registos daquele tempo", diz Jon Landau, manager de sempre de Springsteen e um dos primeiros editores da Rolling Stone.
"Ochs tinha enorme aceitação pelo seu público porque ele não estava ao serviço de nenhuma facção", nota Carroll. "Eu não sentia que ele fosse dogmático ou didático". De facto, Ochs era atraído pela pureza da Esquerda radical (as notas originais deste álbum eram poemas de Mao Tsé-Tung - o comentário de Ochs era a linha "É este o inimigo?"). Por outro lado, ele escreveu duas canções a lamentar a morte do Presidente Kennedy. Segundo Jack Newfield, antes do assassinato de Robert Kennedy, Ochs estava dividido entre apoiar RFK e apoiar uma alternativa Yippie aos dois partidos [Democrata e Republicano].
(...)
Algumas das canções neste álbum - "Love Me, I'm a Liberal" e as algo mais prosaicas "Cops of the World" e "I'm Going To Say It Now" - são fotogramas históricos da época, veiculando, respectivamente, o sentimento anti-intervenção e o movimento de liberdade de expressão nos campi universitários. Outras canções continuam surpreendentemente actuais 30 anos depois de terem sido escritas. "Canons of Christianity", com muito poucas alterações, podia ser tida como uma crítica à Coligação Cristã.
"Bracero", sobre a humanidade dos estrangeiros ilegais, podia ter sido escrita em resposta à Proposta 187.
Mas Ochs foi mais que um lutador político. Foi um poeta e um artista. Nas suas melhores canções, nota Carroll, "ele apresentava a imagem política com uma imagem poética." Ouçam "Ringing of the Revolution", talvez a apoteose da fábula romântica da "revolução" que pairava na cabeça dos activistas dos anos 60 antes de terem de a confrontar com o que ela implicava. (...)
Por duas vezes, Ochs menciona Bob Dylan nas suas irónicas introduções deste álbum, referindo-se a ele como "Deus" e fantasiando sobre um filme em que o próprio Ochs faria o papel de Dylan. Embora activistas aplaudissem Ochs por continuar a escrever canções políticas muito depois de Dylan as transformar em letras mais pessoais e impressionistas, Ochs sentiu-se obviamente afectado e intimidado pelo impacto cultural e pelo sucesso de Dylan. "Ele sentiu-se ameaçado por estar na órbita de Dylan", lembra Newfield. "Magoavam-no", acrescenta Wickham, "quando pessoas ligadas a Dylan se referiam a ele (Ochs) não como poeta mas como jornalista". (Ochs parece ter tido sempre boas relações com Dylan. Quando Ochs organizou um concerto de beneficência para os refugiados chilenos depois do assassinato de Allende, Dylan esteve lá e cantou.)
Ele pode ter estado na "órbita" do Dylan, mas artisticamente Ochs nunca esteve na sua sombra, e nunca foi um imitador. (...)
Uma diferença essencial entre Ochs e Dylan, observa Carroll, é a sua vontade em expor o que sentia: "Ele não se preocupou em escrever frases sentimentais. Nos anos 60 dava-me a sensação que o maior medo do Dylan era que não parecesse fixe, que ele fosse interpretado como sentimental. Phil Ochs não teve medo de ir por aí."
Este "In Concert", quando saiu, tinha duas das mais canções sentimentais e eloquentes que Ochs escreveria. Quando andava na universidade dava-me a sensação que cada puto com uma guitarra acústica tocava "Changes" mal aprendia as notas. Nos anos de angústia e naquela década de angústia, foi a melhor forma que os putos acharam para dizerem que eram sensíveis. "There But for Fortune" fala de pessoas de qualquer época e foi certamente a canção de maior sucesso comercial de Phil Ochs."
Quem escutar estas palavras, assim cantadas, poderá facilmente perceber a grande perda que foi perdermos um homem assim.
Numa das raras aparições na televisão, no programa The Sound is Now (apesar da fraca qualidade de som e imagem, estão disponíveis dois vídeos: este e este), podemos sentir a integridade, o sorriso e a humildade que Phil Ochs significava e trazia como ser humano.
Os primeiros discos de Phil Ochs datam ainda da primeira metade da década de 6o são instrumentalmente do mais simples que se fazia na altura entre os cantores folk (não só estadunidenses):
"All The News That's Fit to Sing" (Elektra EKS 7269, editado em Novembro de 1964) era apenas cantado com a sua guitarra (e parece não haver mais ninguém, hoje, a tocar assim...) e com outra, tocada por Danny Calb.
O seguinte, "I Ain't Marching Anymore" (Elektra EKS 7287, editado em Agosto de 1965), era apenas interpretado por Ochs.
A canção que dá nome ao álbum é, a par da "Universal Soldier", de Buffy Sainte-Marie e mais popularizada por Donovan, a canção anti-guerra mais certeira que conheço.
Após o mencionado disco ao vivo de 1966, por razões sucintamente afloradas no texto acima, Phil Ochs adoptou outros meios para se exprimir, enveredando por abordagens e arranjos mais complexos. Esta complexidade que acompanhava e passou a caracterizar os textos que passou a escrever, mais densos e metafóricos, marca uma transição irreversível no seu percurso.
Na reedição de 2000 de "Pleasures of the Harbor" (A&M SP 4133, lançado em 1967), Richie Unterberger fala-nos desta nova fase do cantor:
"Se existe um disco de "transição" de um artista maior dos anos 60, "Pleasures of The Harbor" é esse disco. O álbum foi a primeira gravação a recorrer arranjos para uma banda; a sua quase definitiva "descolagem" das canções folk de protesto pelas quais se tornou conhecido; o seu primeiro para a então recente editora A&M; e o seu primeiro a ser gravado em Los Angeles, a cidade para a qual se mudou no final da década. [Vivia antes em Nova Iorque]. É sem dúvida o seu trabalho musicalmente mais ambicioso (...)
Quando Ochs começou a trabalhar em "Pleasures of The Harbor", em Agosto de 1967, ele era um dos últimos artistas folk que ainda não tinham feito a passagem para o folk-rock. Com a excepção de uma (muito boa) versão eléctrica de "I Ain't Marching Anymore" num 7" de 1966, todas as suas gravações anteriores - incluindo três álbuns para a Elektra - continham arranjos exclusivamente para voz e guitarra acústica. (...) Durante o ano de 1966, a música folk acústica tinha sido completamente tomada pelo folk-rock e pelo seu chefe rival Bob Dylan e seguidores Byrds, Simon & Garfunkel e Mamas & The Papas. Por volta do Verão de 1967, o próprio folk-rock passou pelo pico do psicadelismo de "Sgt. Pepper's" e de "Surrealistic Pillow", e o álbum homónimo dos Doors atingia o topo das tabelas.
"Pleasures of The Harbour" pode ter sido o primeiro disco de Phil a usar instrumentos eléctricos e arranjos elaborados, mas não era bem folk-rock. Influenciado por rock & roll, jazz, bandas sonoras, composições clássicas e até por electrónica avant-garde, Ochs procurou arranjos elaborados e por vezes orquestrais que complementariam a poesia progressivamente mais complexa dos seus textos. Queria que cada canção fosse diferente em ambiente e na produção e, ao mesmo tempo, que o álbum fluísse como um todo. Os responsáveis deste processo foram o produtor Larry Marks, o arranjador Ian Freebarin-Smith e o pianista Lincoln Mayorga, que forneceu ornamentações clássicas, de ragtime e de jazz lounge quando foi preciso.
A produção - e até, talvez, sobreprodução - pop-rock barroca estava na sua máxima força na faixa de abertura, "Cross My Heart", com as percussões, o cravo, as flautas, as cordas, os sopros metálicos e as dobragens de voz. A canção anunciava que Ochs abandonara assuntos explicitamente sociais para optar por declarações mais abstractas e cujas letras careciam de várias audições para serem compreendidas nas suas matizes.
(...)
Nenhuma canção do novo cânone de Phil Ochs é mais controversa que "Crucifixion". Não tanto pelo lado lírico - embora tenha sido muito discutido -, mas sobretudo pelo arranjo de quase música concreta. Os seus dez versos sobre heróis martirizados não puderam senão ser interpretados como uma alusão ao então recentíssimo assassinato do presidente Kennedy. Ao manter o experimentalismo eclético de "Pleasures of the Harbor" [a canção], Ochs decidiu, no entanto, envolver a sua voz em "loops", cravo eléctrico e distorções electrónicas, arranjados por Joseph Byrd (líder da excelente banda de rock experimental United States of America). Isto fê-lo soar a todos como uma voz a perder-se numa tempestade avant-gard: e a extrema beleza da canção ficou encoberta aos olhos de muitos fans quando a ouviam tocada só com guitarra acústica.
"Pleasures of the Harbor", durando mais de 50 minutos, era excessivamente longo para 1967, com a maior parte das suas canções a exceder os 5 minutos e algumas a aproximarem-se dos 10. E tampouco teve muito sucesso, atingindo a posição 168 nas tabelas de vendas. Se no álbum seguinte ["Tape From California", editado em Outubro de 1968 pela A&M - SP 4148], Ochs não voltava ao formato acústico, e continuaria a escrever as canções de forma nada habitual até ao fim da década, não voltou mais a empregar texturas diversas como as que se ouvem em "Pleasure of The Harbor".
Em Agosto de 1968, dos dias 26 a 29, deu-se um episódio marcante para a vida do país de Phil Ochs. Foi a Convenção do Partido Democrata, e aconteceu em Chicago.
Evento sobre o qual o próprio Phil Ochs, num concerto em Vancouver, Canadá (registado no Cd "There and Now" - editado pela Rhino R2 70778 em 1990) nos fala:
"Depois de Chicago pensei escrever muitas canções de protesto. Mas não o fiz, apenas escrevi uma, pequena... Não, escrevi duas! Vou cantar-vos duas canções sobre Chicago. Sobre a experiência de Chicago...
... Para muitos dos que não foram a Chicago... houve um momento em que todos queriam ir a Chicago, e depois aquilo ficou muito assustador e ninguém queria ir a Chicago e apenas 5 mil dos 300 mil [esperados] apareceram. A canção que vou cantar é para lembrar aqueles que não apareceram.
[e continua, cantando a primeira, que diz assim:]
"Oh! where were you in Chicago?
You know, I didn't see you there.
I didn't see them crack your head
or breathe the tear gas air.
Oh! where were you in Chicago
when the fight was being fought?
Oh! Where were you in Chicago
'cause I was in Detroit"
[e prossegue]
"É sobre a psicologia do Movimento. Mas não interessa se estiveram em Chicago ou não, porque tivessem estado ou não, Chicago não vem a Vancouver. Apenas a Los Angeles, e ao hemisfério norte (...)
Uma das coisas que se passaram em Chicago foi provavelmente mais triste que tudo o resto. Foi muito excitante no começo mas muito triste depois, porque algo deveras extraordinário morreu lá. Que foi a América."
E depois começa a cantar a segunda das canções, "William Butler Yeats Visits Lincoln Park and Escapes Unscathed", cuja letra transcrevemos na íntegra:
As I went out one evening to take the evening air I was blessed by a blood-red moon In Lincoln Park the dark was turning I spied a fair young maiden and a flame was in her eyes And on her face lay the steel blue skies Of Lincoln Park, the dark was turning Turning
They spread their sheets upon the ground just like a wandering tribe And the wise men walked in their Robespierre robes Through Lincoln Park the dark was turning The towers trapped and trembling, and the boats were tossed about When the fog rolled in and the gas rolled out From Lincoln Park the dark was turning Turning
Like wild horses freed at last we took the streets of wine But I searched in vain for she stayed behind In Lincoln Park the dark was turning I'll go back to the city where I can be alone And tell my friend she lies in stone In Lincoln Park the dark was turning.
A canção, na versão de estúdio, incluída no ano seguinte no álbum "Rehearsals For Retirement" (A&M SP 4181, editado em Maio), é baseada ao piano, com um acordeão triste. O tom das canções mais longas era semelhante. A capa desse álbum demonstrou a todos, embora à maneira irónica do cantor, que algo tinha, de facto, morrido. Em Chicago e em Phil Ochs:
A canção homónima, a fechar o disco, ouvida hoje, com tudo o que está dito e lido até aqui, dá-me realmente uma vontade imensa de chorar. Para perceberem porque dizemos isto, ei-la:
The days grow longer for smaller prizes I feel a stranger to all surprises You can have them I don't want them I wear a different kind of garment In my rehearsals for retirement
The lights are cold again they dance below me I turn to old friends they do not know me All but the beggar he remembers I put a penny down for payment In my rehearsals for retirement
Had I known the end would end in laughter I tell my daughter it doesn't matter
The stage is tainted with empty voices The ladies painted they have no choices I take my colors from the stable They lie in tatters by the tournament In my rehearsals for retirement
Where are the armies who killed a country And turned a strong man into a baby Now comes the rabble they are welcome I wait in anger and amusement In my rehearsals for retirement
Had I known the end would end in laughter Still I tell my daughter that it doesn't matter
Farewell my own true love, farewell my fancy Are you still owin' me love, though you failed me But one last gesture for her pleasure I'll paint your memory on the monument In my rehearsals for retirement.
Aquela voz, aquele piano.
Estas palavras.
"Onde estão os exércitos que assassinaram um país
e transformaram um homem forte num bébé?"
Desencantado com rumo que o país tomou a partir de Chicago, que prometia esperanças completamente esboroadas na própria violência que o rodeou (bem gostávamos de poder ler o livro "Chicago 68", de David Farber, para sabermos mais sobre o que de muito lá se passou e se frustrou e se perdeu), Phil Ochs deixou de acreditar no seu papel enquanto cantor e mobilizador das causas. Li problemas associados a depressão e a álcool. Os textos andam por aí pela internet. Mas temos de compreender que essas foram apenas consequências.
Inevitáveis?
Phil Ochs, não se percebe muito bem porquê, ou talvez a direcção seguida seja mais que auto-explicativa, virou-se para o passado: homenageando as suas grandes influências musicais, Buddy Holly, sobretudo, e Elvis Presley e passando a apresentar-se ao vivo com a sua extravagante e chocante (para os que já sabem e leram a história do que se passou) fatiota dourada de estrela rock. Foi isso que ficou registado nas capas dos discos "Greatest Hits" e "Gunfight at Carnegie Hall". Este último, gravado ao vivo, não renegava o passado. Nem o público se mostrava desiludido com a nova fase do cantor. Como no-lo diz Richie Unterberger (na reedição conjunta de "Rehearsals for Retirement" e "Gunfight at Carnegie Hall" (CDx2 Collector's Choice Music CCM 150-2, editado em 2000):
"Gunfight foi gravado em 27 de Março de 1970, numa fase polémica da carreira de Phil Ochs. Exausto pelas suas lutas por enformar a consciência da ala esquerda americana durante os anos 60, começou a usar fatos dourados ao estilo de Elvis Presley ao vivo e a tocar versões de clássicos de rock, sobretudo os de Elvis e Buddy Holly. Isto foi parte do seu esforço por manter continuidade no estilo "não-político" por que tinha enveredado e uma homenagem ao estilo que tanto amava. No concerto, contudo, as reacções do público dividiram-se, tal como Bob Dylan tinha provocado em meados da década que terminara.
Mas na verdade, o alinhamento registado em disco é pouco representativo do espectáculo, que teve muito material original que não apareceu em Lp. (Uma dessas canções, uma versão acústica de "Crucifixion", acabou por ser incluída na compilação "Chords of Fame" e na caixa "Farewells & Fantasies"). Porque apostou demasiado nas canções rock (nas rapsódias), a gravação passou a ideia de que Ochs estava mais interessado em fazer versões que em cantar material próprio.
Ochs não era bem uma boa súmula de Holly ou Presley, nem as suas interpretações eram tão radicais ou imaginativas para figurarem entre os seus melhores registos. No entanto, "Gunfight" foi uma interessante e por vezes fascinante incursão pela viragem da sua carreira.
(...)
Eram 3 horas da manhã quando Ochs começou a cantar, em encore, a canção "A Fool Such as I", aqueles que ficaram para o ouvir ficaram às ecuras com ele após o Carnegie Hall ter cortado a energia por alguns minutos devido ao adiantado da hora."
Este disco, gravado ao vivo em 1970, foi apenas lançado em 1975.
Sem sucesso comercial e desiludido, mesmo assim não é chocante a sensibilidade que expunha numa das suas canções mais autobiográficas, "Tired" (incluída na compilação "A Toast to Those who Are Gone" - Rhino R2 70080, cujo livreto tem um texto de um grande admirador seu, Sean Penn.)
Não doía muito, porque apesar da solidão, Ochs mantinha a força e a humanidade por que sempre pautou a sua vida:
"So I start out again
With a smile on my face
To hide all the empty
and search for a friend"
Mas era já tarde.
Adiantada ia não só a hora daquele concerto, mas a própria vida de Phil Ochs.
Na sua última gravação de estúdio, o álbum "Greatest Hits" (mais uma brincadeira de Ochs, pois não se trata de uma compilação mas sim de um disco de originais - A&M SP 4253, editado em Março de 1970), na sua derradeira canção, "No More Songs", Ochs deixava o testemunho de tudo o que se passara e ia passar:
Hello, hello, hello Is there anybody home? I've only called to say I'm sorry.
The drums are in the dawn, and all the voices gone. And it seems that there are no more songs.
Once I knew a girl She was a flower in a flame I loved her as the sea sinks sadly Now the ashes of the dream Can be found in the magazines. And it seems that there are no more songs.
Once I knew a saint who sang upon the stage He told about the world, His lover. A ghost without a name, Stands ragged in the rain. And it seems that there are no more songs.
The rebels they were here They came beside the door They told me that the moon was bleeding Then all to my suprise, They took away my eyes. And it seems that there are no more songs.
A star is in the sky, It's time to say goodbye. A whale is on the beach, He's dying. A white flag in my hand, And a white bone in the sand. And it seems that there are no more songs.
Hello, hello, hello Is there anybody home? I've only called to say I'm sorry. The drums are in the dawn, and all the voices gone. And it seems that there are no more songs.
It seems that there are no more songs. It seems that there are no more songs.
E não houve mais canções.
Phil Ochs enforcou-se.
Estávamos em 9 de Abril de 1976.
O mundo acabava de perder um homem bom e justo e apetece-me chorar sempre que penso nisto.
Simplesmente se vai a vida, e regressa Como um novelo que o vento desvela, e acaba Somos actores às vezes, Espectadores às vezes E simplesmente, como se nada fosse, A vida dá-nos e tira-nos o papel da peça.
Serenamente quando vem a vaga, acaba E talvez ao se deixar vencer, começa A praia apaixonada Desconhece a longa espera E abre os braços a pensar Que talvez hoje ela queira ficar.
Assim, apenas, deixo-me que me deixes Apenas assim te deixo que agora me deixes Eu tenho para ti um ninho na minha árvore E uma nuvem branca pendurada num ramo... Muito branca
Sói ser quando o sol desce, que o olhas Ele triste sabe que quando decresce, o amas Chegamos tarde às vezes Sem saber que às vezes Na frágil arte de um gesto simples Podia dizer-te que
Apenas, assim, deixo-me que me deixes Assim, apenas, te deixo que agora me deixes Eu tenho para ti um ninho na minha árvore E uma nuvem branca pendurada num ramo... Muito branca, Muito branca, Muito branca...
Eu tenho para ti um ninho na minha árvore E uma nuvem branca pendurada num ramo... Muito branca.
Raimon reflectia assim sobre as suas várias passagens por Madrid, pelo menos sobre as de 1968 e de 1976, consideradas históricas por alguns comentadores:
A Madrid nunca se foi com tranquilidade, no sentido de poder fazer bem os recitais, sempre se foi lá aproveitando situações estranhas que te abriam alguma possibilidade para cantar. Mas acabavam por te proibir ou acabava mal, exceptuando Dezembro de 1976, em que consegui fazer uma semana no Teatro Fígaro. A partir daí as coisas entraram na normalidade, mas antes... Cantei em concertos colectivos, como no Festival de los Pueblos Ibéricos e numa festa do PCE. O da Faculdade de Economia, em 68, despoletou uma grande manifestação. No de Fevereiro de 76 mostrava-se pela primeira vez publicamente a Plantajunta. Foram recitais muito cívicos, no sentido de impacto na sociedade, mais além do estritamente artístico, para dizê-lo de alguma maneira, e talvez isso tenha feito com que a canção passasse a um segundo plano e um facto circunstancial. Lembro-me de uma forma especial o recital do "18 de Maig a la Villa". Havia toda a ajuda de Paris e aqui estávamos expectantes, a ver o que se ia passar. Eram momentos excepcionais, de tensão, pelo menos para alguns, uma minoria se nos comparássemos à quantidade de gente que saia à rua do Quartier Latin. Sempre gostei muito de Madrid, sempre lá fui actuar quando pude e houve uma grande comunicação, apesar de cantar numa língua diferente. Mas o feito artístico e cívico rompe qualquer obstáculo.
Raimon vai a Madrid. Franco já morreu e as organizações unitárias da oposição mobilizam-se. Em Espanha são a Junta Democrática, que gira em torno do PCE e das CCOO, e a Plataforma de Convergência Democrática, movida pelo PSOE e pela UGT. Acabarão por se unir, no fim, sob o nome popular Platajunta. Raimon assegura também aos seus representantes as primeiras filas: Felipe González, Marcelino Camacho, Fernando Álvarez de Miranda, Joaquín Garrigues Walker, Simón Sánchez Montero, Josep Melià, Francisco Fernández Ordóñez, Nicolás Redondo, Joaquín Ruiz Giménez, Nicolás Sartorius, entre eles, e ao lado de intelectuais e artistas como agora Gabriel Celaya, José Hierro, José Luis García Berlanga, Jaume Camino, Juan Antonio Bardem, Adolfo Marsillach, Carmen Martín Gaite e Antonio Saura. Escolhe as instalações desportivas do Real Madrid - impossível despistar melhor que no território de Don Santiago Bernabéu - e os dias 5, 6 8 e 9 de Fevereiro de 1976. Mas apenas fará uma actuação. A Direcção Geral de Segurança, às ordens de Manuel Fraga Iribarne, encarregado da pasta do Ministério do Interior, emite esta nota:
Às 22:30 horas do dia 5 do corrente, e na Cidade Desportiva do Real Madrid, deu início o "Festival Raimon" com uma assistência de umas seis mil pessoas, que ocupavam os lugares das bancadas e da pista, além dos corredores e acessos, dificultando a deslocação do público até aos seus lugares. Desde o começo, o acto converteu-se numa autêntica manifestação política, com exibição de punhos fechados e gritos tais como "Dolores Ibárruri a Madrid", "Carrillo", "Amnistia", "Liberdade" e outros. Ao mesmo tempo, soltaram-se bandeiras vermelhas, tanto entre o público como no próprio palco, sendo a sua aparição acolhida com gritos e palavras de adesão. Posteriormente, no cenário expôs-se uma bandeira com as cores anarquistas, e proferiram-se frases injuriosas contra Sua Majestade o Rei do Juan Carlos I, e ataques verbais contra a polícia. Às 00:15 terminou o encontro, abandonando os assistentes o local, não se produzindo incidentes nem manifestações. Face a estas lamentáveis circunstâncias, foi suspendido o recital anunciado para o dia de hoje e denegada a prorrogação para os próximos dias 8 e 9.
Raimon, no encontro, fez o seguinte programa: - La nit - Só qui só - Qui ja ho sap tot - El País Basc - Al vent - Sobre la pau - Contra la por - T'adones, amic - T'he conegut sempre igual - Inici de càntic - Jo vinc d'un silenci - Quatre rius de sang - Es veu - 18 de Maig a la Villa - Indesinenter - La muntanya es fa vella - Quan jo vaig nàixer - Cançó del remordiment - D'un temps, d'un país - Sobre la por e - Diguem no.
Três bises e um novo "Diguem no" em versão hino, cantada por mais de cinco mil espectadores. Raimon reúne a multitudinária representação jornalística, local de enviados especiais de todo o lado, como assinala um deles, um excepcional cronista, nem mais nem menos que Joan Fuster, e recusa duramente a continuidade franquista que faz ver que avança para a Democracia - Adolfo Suárez não tinha sido nomeado presidente- mantendo ainda 2 mil presos políticos: "Não me deixam cantar, e uma democracia afónica é algo muito triste."
Depois do êxito artístico, social e político do Palau dels Esports, Raimon pensa fazer algo parecido em Madrid, também ao laod de Oriol Regàs e empregando muito jornalista. Manuel Vázquez Montalbán, sob o pseudónimo de "Sixto Cámara", um alter-ego que supostamente vive em Madrid, escreve uma bela coluna no semanário Triunfo (31 de Janeiro de 1976), periódico essencial para entender o jornalismo democrático em tempo de ditadura. Nela se encontra uma citação livre de Raimon quando diz "a Lei Antiterrorista fechava toda a espécie de bocas e mãos". Começa com uma premonitória frase, que infelizmente se cumpriria:
Se a autoridade não o impedir e o tempo histórico o permitir, Raimon vai cantar a Madrid, saltando por cima de uma ausência de vários anos. Ainda recentes os ecos da sua actuação no Palácio dos Desportos de Barcelona naqueles dias escuros em que a agonia de Franco tinha disparado os sinais de alarme, a Lei Antiterrorista fechava toda a espécie de bocas e mãos, os democratas acreditavam estar a viver uma marcha atrás no escuro túnel do tempo, deste tempo, destes trinta e seis anos de tempo. Lembro uma conversa telefónica com Raimon por aqueles dias. Convidava-me a voar até Barcelona para assistir ao acto do Palau dels Esports, "palau" que com as façanhas de Raimon e Llach adquiriu tanto significado na história da Catalunha e de Espanha como o Palau de la Música. - Anima-te, Sixto. O acto força a gente a recuperar o moral. Há uma perda geral de iniciativas. Assisti ao acto e dou fé - ão podia dá-la então porque o Triunfo estava fechado - de que quase nove mil espectadores recuperaram a fala e a consciência de uma certa "comunhão dos santos". Foi um acto emocionado, algo crispado, entre a catacumba e a rua, estimulante. Se se bebe uma, duas, três, quatro, cinco garrafas de vinho com Raimon, parece que estamos a bebê-las com um intelectual pré-revolucionário, ultimamente fascinado pelo papel do Estado não só na sociedade capitalista, mas sobretudo na socialista. É um Raimon muito lido, ainda que os frágeis óculos não escondam totalmente uma vitalidade quase agrária, valencianíssima. Quando Raimon surge num palco produz-se um milagre de transubstanciação e o furacão de Xàtiva sopra o vento histórico poderoso sem outro acompanhamento que o da guitarra. Entre Raimon e o público estabelece-se uma ligação política total e conformam juntos um ser vibrante, épico, duro como quartzo. É uma relação curiosa. Raimon exige ao público compromisso político. O público exige a Raimon que seja exigente com o público. Em mangas de camisa, com as mãos ocupadas pela guitarra, sob um foco de luz que delimita o escasso território de um homem que canta só, com as palavras mais económicas, justas, necessárias, com uma música suficiente surgida da memória melódica popular, Raimon agiganta-se e agiganta o público. De alguma forma é, de facto, um milagre. E é o milagre da recuperação colectiva da razão histórica, no duplo sentido da razão racional e da razão lógica. A reivindicação da Razão e das razões de uma colectividade e dentro destas, das peculiares da colectividade catalã e das forças democráticas, populares, progressistas.
A última vez que vi Raimon e Annalisa, sua companheira, falámos de Gramsci. E a este grande teórico devíamos regressar para explicar definitivamente o fenómeno Raimon. Toda a sua força cénica não nasce apenas da raiva e da razão. Tem o seu esqueleto nessoutro Raimon lido, cujos frágeis óculos não escondem por completo uma vitalidade agrária, valencianíssima.
Em 1974, em "Qui ja ho sap tot", incide na mesma temática, nas razões que o levam a cantar. Arranca com a socrática modéstia de quem se diz ignorante ou adscrito à cartesiana dúvida universal - "L'única seguretat" insistirá - e desenvolve mais as forças motrizes da sua actividade, que enumera com precisão:
["Qui ja ho sap tot" já por cá apareceu (foi a 21ª canção de Raimon) e volta. A mesmíssima versão, gravada no Recital de Madrid. Não é necessário traduzi-la. Ele mesmo o faz para nós, antes de a cantar. Eis portanto a 30ª canção.]
Qui ja ho sap tot que no vinga a escoltar-me, que no vinga a escoltar-me. Sempre he cantat per qui ha volgut aprendre, perquè jo encara aprenc de qui m'escolta, de qui em fa callar o no m'escolta, per això dic: qui ja ho sap tot que no vinga a escoltar-me, que no vinga a escoltar-me. El desig i l'esperança, la derrota no acceptada, el dubte de tot saber, l'alegria ben guanyada, la tristesa d'un temps malalt d'hipocresia forçada que volem ben diferent, és el que jo cante. Qui ja ho sap tot que no vinga a escoltar-me, que no vinga a escoltar-me. Un crit cert i uns quants matisos, poemes de vells poetes, un amor encara viu, molta ràbia acumulada en la lluita necessària contra el matalàs immens que ens volen posar damunt, és el que jo cante. Qui ja ho sap tot que no vinga a escoltar-me, que no vinga a escoltar-me. El desastre quotidià que s'allargassa anys i anys, la lentitud de la represa i els que cauen pel camí, els tirs mal dirigits i, per què no dir-ho també? una fe, una gran fe en determinada gent, és el que jo cante. Qui ja ho sap tot que no vinga a escoltar-me, que no vinga a escoltar-me.
Para todos eles e por todos estes motivos, Raimon torna-se - e é este o último elemento que é preciso destacar do artigo de Roig - um líder. Viviam-se tempos de substituição. A proibição de fazer política não a eliminava, obrigava-a a imaginar vias alternativas. Sim, havia políticos democratas, mas castravam-se-lhe a necessária epifania do encontro e o banho de massas. Raimon teve de fazer este segundo papel, mas com a honradez de sempre deixar claro que não era um político nem aspirava a sê-lo, e dando protagonismo aos verdadeiros políticos quando podia, como no recital no Palau dels Esports, no qual, como se disse, os sentou nas primeiras filas.
Originalmente propriedade da Movieplay espanhola, depois Fonomusic, hoje incluída no grande grupo da Warner Music (Spain, no caso), o disco do mítico concerto de Madrid, em 1976, conheceu nova reedição. Não necessariamente no ano que está prestes a terminar, mas no ano passado, 2008.
À semelhança dos discos que Lluís Llach gravou para a editora, também reeditados nos mesmos moldes, esta reedição é em digipack e traz uma entrevista (em quatro páginas do livreto, em letra miudinha) feita em 2000 por Victoria Prego (a data não é indicada, mas infere-se):
"Raimon é o único artista que me recebe fora de sua casa, num hotel próximo das Ramblas. Tem o cabelo branco, mas tão espetado que parece um miúdo. Isso, e os olhos brilhantes, agudos e por vezes luzidios que sente que me chego demasiado ao seu interior, compõem a imagem de um moço de de 60 anos, com uma leve pose de amargura que ele veste de ironia e de desapego."
Traz também um resumido texto, da autoria de Maurílio de Miguel, sobre o seu percurso artístico, incidindo nas suas mais importantes actuações, seguido de um outro dedicado apenas ao presente concerto, que, como já tivemos oportunidade de dizer, foi gravado em 5 de Fevereiro de 1976 e ao qual se iriam seguir outros. Que foram cancelados devido ao "clima perigoso" ou "subversivo" que aí se criou.
Um pormenor da capa exterior da reedição, que podia talvez (ou muito bem) ter sido evitado é o descentramento das letras, tal como se pode ver ao lado. De qualquer das formas, questão de preciosismos (a vivência do disco é mais importante que tê-lo, mas estamos dependentes do materialismo para renovar a memória registada), a capa do livreto interior está "correcta".
El Recital de Madrid. Um disco fundamental. Aliás, para nós, o melhor disco ao vivo do género.
A conhecer (outros discos "quentes" que se lhe podem juntar):
"Barcelona, Gener del 76" (1976, Movieplay; reed. Fonomusic, 2002) e "Camp Nou, 6 Juliol 1985" (1989, CBS; reed. 2003, Claus Records) - Lluís Llach. "Palau d'Esports, Barcelona 27-2-1976" (1976, BASF; inexistente em cd) - Pi de la Serra "FMI" - José Mário Branco (1982, Edisom, incluído na reed. de Ser Solidário (1996, EMI));
(Se alguém tiver mais propostas a juntar a esta curta lista, bem gostaríamos de conhecê-las. Deixe aqui, portanto e por favor, o seu comentário.)
Imagem extraída de "Tretze que Canten", de Joan Ramon Mainat, Ed. Mediterrània; Barcelona, 1982
Há precisamente 69 anos, nascia a voz que se tornaria " el crit". Raimon, o Homem e o Artista, "indestriable" da História da canção popular da liberdade.
Pela lucidez, pelo amor aos valores da memória, da liberdade, da paz e dos sentires colectivos por um mundo justo, sem "classes subalternas", Raimon é portador da esperança e da força.
Assim, e também hoje, lhe prestamos a nossa homenagem:
Som(Somos)
Indignos da tua luta. Mal-agradecidos Desprezadores Vazios Sem memória Ignorantes e mortos
E não merecemos os frutos do teu grito.
Um arrepio na espinha quando tu cantavas, Quando tu cantavas
Duro e puro Somente a vibração de cordas de uma guitarra sola Sob o teu canto O teu grito.
Ouvindo-te E imaginando o que seria nesse tempo Nós só podemos ser indignos da tua luta.
Que novos cantores estão a substituir os estafetas do passado? Estão a substituir? Estão a ser estafetas?
Quanto passado se perde a partir de hoje? Quantos discos partidos não serão mais gravados, quantas canções deixarão de ser ouvidas, criadas, recriadas, transmitidas...?
Ficaremos agarrados ao passado sem tempo para criarmos presente?
A eles ["Tots els bons"] é dirigida um tipo de canção - "o meu canto quer ser plural com o perfume do mundo dos outros" - que nada tem a ver com a música moderna que se persiste como amestradora de mentalidades sociais, na linguagem marxista, alienação. Raimon explica que tipo de canção faz e a quem a dirige. Em "No em mou el crit", de 1966, traça uma metodologia ou poética. O motor da sua obra não são os tópicos da canção comercial, é a gente que luta, a começar pelos trabalhadores, esta marca de classe que atravessa de cima a baixo a obra raimoniana, e não esquece os que vão com medo aos seus recitais:
Raimon a l'Olympia - 1966
[Esta canção, a 29ª de Raimon na caixa de música, aparece registada pela primeira vez no disco ao vivo no Olympia. É essa mesma versão que podemos ouvir.]
No em mou al crit ni ocells ni flors. Tu, tu que treballes de sol a sol. Tu, tu que notes i vius tota la por. Tu em mous al crit, ni ocells, ni flors. / Não me movem ao grito nem pássaros nem flores. Tu, tu que trabalhas de sol a sol. Tu, tu que sentes e vives todo o medo. Tu moves-me ao grito, não os pássaros ou as flores.
Tu, que estimant entre els homes et deixen sol. Tu, a qui el teu món nega tot consol. / Tu, que amando entre os homens te deixam só. Tu, a quem o teu mundo nega todo o consolo.
No em mou al crit ni ocells ni flors. Un món que ja és ben viu en altres llocs. Un món que ací ofeguen, però no mor. No em mou al crit ni ocells, ni flors. / Não me movem ao grito nem pássaros nem flores. Um mundo que já é bem vivo noutros lugares. Um mundo que aqui asfixiam, mas não morre.
Tu, tu que m'escoltes amb certa por. Tu em mous al crit, no ocells, no flors. / Tu, que me ouves com certo medo. Tu moves-me ao grito, não os pássaros ou as flores.
Não tenhamos ilusões: os instrumentos do poder são feitos à imagem de quem os detém. Os média são um instrumento de poder. O poder político é um instrumento de poder. A capacidade de executar as leis (aquilo a que costumamos chamar Justiça, e que é justa ou injusta consoante são justos ou injustos os que a executam) é um instrumento de poder.
Não tenhamos ilusões: enquanto carrascos assim não forem julgados e condenados (viram como Pinochet morreu sem ir preso?), saibamos lê-lo: é um tipo de poder que continua vigente.
Por isso, não podemos esquecer o 11 de Setembro de 1973. Pela mesma razão, não podemos esquecer o 11 de Setembro de 2001.
(acho deveras estranho o vídeo que se segue ainda não ter sido eliminado (hoje em vez de bombed or killed o sinónimo é mais soft: chama-se deleted) pelo Poder que nos governa. Vamos ver quanto tempo resiste...) E se o leitor que isto lê não aguenta suportar o peso da verdade, continue a ver a telenovela do dia-a-dia. Faça bom proveito e recuse comida do seguinte teor.)
A delicada Roig, romancista de grande sensibilidade, esvaziava todo o carregador da sua máquina de escrever. A imagem da vida da rua contra a morte da residência do ditador no palácio de El Pardo é chocante. Mas a lucidez da escritora deixa passar alguns dos itens que formalizam Raimon comprometido civicamente.
Não puderam liquidá-lo. A ditadura agoniza e Raimon está em plenitude de faculdades. Começam a arranjar formas mais subtis - sem falar da actuação policial -: acusam-no de tudo o que podem, com o tópico sempre enfatizado de ter o coração à esquerda e a carteira à direita, movem campanhas nos jornais e um chega mesmo a inventar um "De Raymond", que se espalha ao comprido como cantor, não sem posar antes com roupa interior nas revistas do destape que proliferam naqueles anos de onanismo. Jesús Amilibia estreava a sua coluna na Hola, enquanto sinal de identidade da imprensa da badalhoquice e da boa sociedade, com uma entrevista em que De Raymond diz: "Não são só as mulheres que se destapam nos filmes. Os homens também têm direito. Neste filme faço duas cenas com dois completamente nus... é muito forte." O que era forte era que a ilustração de um tema tão substancial fosse uma foto de Raimon, neste teor: "O cantor valenciano De Raymond, durante a sua recente e brilhante actuação no Palácio Municipal de Desportos de Barcelona".
Raimon é porta-voz de todo um povo. Com os seus versos, produto de muita reflexão, de pensar em voz alta, retira da clandestinidade as ideias de emancipação social e nacional, de luta contra todo o tipo de injustiça e em especial contra a repressão, que trava o que faz e atemoriza o que quer fazer. Ir aos recitais de Raimon é inquietante, pode acontecer tudo, pode haver intervenção da polícia; dá medo, até, passar a fronteira com os seus discos registados em França. Maurici Serrahima tem-no escrito nas suas memórias, já antes citadas; refere-se a Agosto de 1966:
Os trâmites da aduana francesa eram elementares. (...) Tampouco a alfândega espanhola nos chateou muito - tínhamos a preocupação dos discos de Raimon - e entrámos em Camprodon com tempo para dar e vender.
Nos recitais, as frases-síntese são amplificadas pela rubrica coral dos aplausos e, ao acabar, é Raimon que aplaude o público na sua prévia dimensão de povo. É o que Manuel Sacristán dá a entender, no seu prólogo ao livro de Raimon Poemas i Cançons: "Com todos os bons que o acompanham." Este verso de Jordi de Sant Jordi, da canção "Desert d'amics", descreve um colectivo, o da gente comprometida que estava ao lado do autor na luta que o levou à prisão. Um preso do século XV que lembra os companheiros. "Mas não me retracto, porque fiz o meu dever / com todos os bons que me acompanham." Todos os bons, metáfora das vanguardas lutadoras.
Naquela noite, Raimon estreava "Jo vinc d'un silenci", tão mencionado no relatório policial. Podemos escutá-la no CD n. 10, intitulado "Directes i alguns indirectes", da Nova Intergral. Edição 2000. Para contrapor a versão policial daquele concerto histórico, reproduz-se o artigo que Montserrat Roig escreveu no semanário Treball, órgão clandestino do PSUC, o que obrigava a assinar com pseudónimo. Montserrat Roig, como George Sand, assinava com nome de homem: "Capitão Nemo", a personagem de Jules Verne em 20 Mil Léguas Submarinas. Montserrat Roig, amante de Brahms e admiradora de Raimon, prescindia da arte e lançava uma proclamação (10 de Novembro de 1975):
Enquanto o ditador que provocou uma guerra agoniza, mais de oito mil pessoas - e muitas ficaram à porta - concentraram-se para manifestar o desejo de paz e de mudança democrática. Isso foi o que representou o recital que Raimon deu no Palau dels Esports de Montjuïc, no passado dia 30 de Outubro. A pouco e pouco, com calma, com serenidade, que nada tem a ver com a que proclamam os franquistas, gente de todas as idades foi chegando ao Palau dels Esports. Que os unia? Unia-os a necessidade de se afirmarem colectivamente como povo, de expressar o desejo de liberdade. E não só afirmaram tudo isso, como também qual é hoje o estado de espírito de dezenas, de centenas de milhares de pessoas: a disposição para o combate político, a disposição a não deixar que os nossos destinos - os destinos de todo o povo - continuem manipulados à distância por uma pequena oligarquia corrompida, agora que o ditador se acaba.
A imprensa legal já menosprezou o magnífico espectáculo no Palau dels Esports. Os aplausos repetiam-se, os gritos de "Llibertat", "Amnistia!", "Visca l'Assemblea de Catalunya!" serviam de contraponto das canções de Raimon. De quando em vez surgiam milhares de pequenas luzes de diversos lugares do Palácio, luzes que se multiplicavam até iluminar todo o recinto. Uma só luz não se sente, mas tantas e tantas luzes demonstram-nos, uma vez mais, que somos, como diz um dos versos de Espriu cantados por Raimon, um povo que não se resigna a morrer.
Não foi um acto de consagração de um artista. Enquanto o público aplaudia Raimon, este, por diversas vezes, aplaudia o público - como dantes faziam os oradores nos encontros políticos - simbolizando o carácter comunitário do que se passava naquela noite no Palau dels Esports; simbolizando tudo o que era um episódio da grande marcha colectiva para a liberdade, na qual o artista, o líder, a personagem, não é senão o porta-voz da massa, de todo um povo.
Era um povo cheio de vida o que gritava, perante a morte que arruma El Pardo e seus fantoches apegados a um poder que se rompe. Um povo que tinha sabido dizer, uma vez mais, que só a união nos pode levar à vitória definitiva.
Penso que esta interpretação é a do recital de Montjuïc. Extraída de um filme sobre a Nova Cançó e que, ou muito me engano, não está acessível ao grande público. Esta é das poucas cenas disponíveis.
Este é o atestado que fez engrossar a ficha de Ramon Pelegero Sanchis, alias "Raimon", nos arquivos metálicos das dependências da Prefectura Superior de Policia, na Via Laietana:
Às 22:45 horas de ontem teve lugar no Palácio Municipal de Desportos de Montjuïc, autorizado por este Governo Civil, o recital de canções interpretado pelo cantor "Raimon" [sic, entre aspas, como alias]. Ao acto assistiram umas 10 mil pessoas, entre homens e mulheres, na sua maioria jovens de uns 20 a 22 anos de idade, eles de cabelo comprido. Durante as canções, tanto ao princípio como ao final das mesmas, quando as letras aludiam à luta silenciosa, como era a chamada "Jo vinc d'un silenci", que teve de repetir ante a insistência do público, que irrompia em aplausos e gritos de "liberdade, liberdade" e "fora o actual Regime!", os espectadores actuavam como uma massa enfurecida.
Finalizada a primeira parte e visto o cariz que o espectáculo estava a tomar, solicitou-se reforço da Polícia Armada, que se situou com os seus carros à frente do Pavilhão Municipal dos Desportos, junto ao Parque de Bomberos, desalojando todos os veículos estacionados em frente ao Pavilhão, a maioria propriedade dos empregados do Palácio Municipal, para que desta forma se pudesse facilitar a actuação da Força Pública se fosse preciso.
Dados os ânimos exaltados de todo o público, foi impossível suspender o recital, para evitar que se produzisse um confrontamento entre a Força Pública e os assistentes, pelo que se deixou continuar a celebração do espectáculo, advertindo o cantor que o terminasse quanto antes. Assim, ordenou-se aos empregados do pavilhão que, mal acabasse a actuação, abrissem todas as portas para facilitar a evacuação do local com a maior rapidez possível.
Uma vez finalizada a actuação do cantor, que ante a insistência do público teve de repetir a canção "Jo vinc d'un silenci", aplaudida com os sabidos gritos subversivos, o público começou a desfilar uns cinco minutos depois de acabar tal actuação, mas antes de abandonar o local, alguns espectadores gritaram "Abaixo o regime" e "Queremos celebrar uma Assembleia de irmãos catalães, com liberdade". O espaço ficou completamente vazio de público após 15 minutos, sem que se tivesse produzido qualquer alteração, indo os assistentes em várias direcções, permanecendo a Força concentrada até que estivesse desepejada de público.
A actuação deste cantor acabou às 00:20 horas, significando que em todas as canções aplaudia ao final das mesmas ao uníssono do público e em particular, quando este irrompia em gritos subversivos.